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Presidência francesa da UE marcada pela guerra na Ucrânia e eleições internas

Foto EPA/RONALD WITTEK
Foto EPA/RONALD WITTEK

A presidência rotativa francesa do Conselho da União Europeia (UE) no primeiro semestre do ano ficou marcada pela guerra na Ucrânia, que ocupou boa parte das atenções dos 27 nos últimos meses, assim como pelas eleições internas em França.

Apesar da experiência da anterior presidência, em 2008, durante a qual a liderança francesa já fora 'brindada' com uma intervenção militar russa numa antiga república soviética, a Geórgia, além da crise financeira que começou nesse ano, dificilmente Paris poderia imaginar um semestre mais atribulado quando assumiu o leme da UE no início do ano para aquela que se pensava ser a primeira presidência pós-crise da pandemia da covid-19.

Não estando o alargamento da União entre as prioridades da presidência francesa -- ou de qualquer outra que a antecedeu nos últimos anos, face à óbvia falta de 'apetite' político, apesar das reiteradas promessas de perspetiva europeia para os países dos Balcãs Ocidentais -, ninguém prognosticaria no início deste ano que, em junho, os 27 atribuíssem o estatuto de países candidatos à adesão à Ucrânia e Moldova, um dos muitos efeitos da guerra lançada pela Rússia em 24 de fevereiro.

O Presidente Emmanuel Macron já sabia à partida que, além de presidir ao Conselho da UE, teria de lidar com dois atos eleitorais decisivos internamente -- na prática, quatro, atendendo às duas voltas de cada sufrágio -, e que acabaram por ter um sabor amargo, pois se conseguiu ser reconduzido no Eliseu ao voltar a bater a candidata da extrema-direita francesa Marie Le Pen na segunda volta das presidenciais de abril, as eleições legislativas de junho ditaram o fim da sua maioria absoluta e deixam antever um mandato difícil, que também o fragilizam um pouco na cena europeia.

Inesperados foram os desenvolvimentos na cena internacional, com a particularidade de a agressão militar russa à Ucrânia ter desencadeado avanços significativos da UE em vários domínios, desde a Defesa à política energética e migrações, ainda que pondo um travão na recuperação económica a que se assistia na Europa e motivando uma inflação sem precedentes na zona euro.

A resposta unida dos 27 à invasão russa da Ucrânia constitui de resto o maior 'feito' do semestre, destacando-se a adoção de seis pacotes de sanções sem precedentes dirigidos a Moscovo -- incluindo sobre importações de carvão e petróleo russo, o que motivou uma nova estratégia energética do bloco europeu em busca da sua autonomia -, a inédita decisão da UE de financiar a aquisição e entrega a um país terceiro de armas, e a solidariedade no acolhimento de milhões de refugiados ucranianos.

Ainda que a presidência francesa tenha tido um papel importante em todos estes dossiês, Macron, que procurava neste semestre afirmar a França como líder político do projeto europeu -- aproveitando a saída de cena da ex-chanceler alemã Angela Merkel -, não saiu necessariamente bem na 'fotografia'.

Tomando a iniciativa de tentar intermediar uma solução para a tensão provocada pela concentração de dezenas de milhares de forças e meios militares russos junto às fronteiras com a Ucrânia, Macron deslocou-se no início de fevereiro a Moscovo para se reunir com Putin, mas dessa reunião fica apenas a memória da famosa mesa longa que separava os dois líderes.

Nesse mesmo mês, Moscovo avançou e invadiu o país vizinho, no que constituiu um óbvio fracasso do Presidente francês.

Emmanuel Macron voltou a ser criticado quando, mais recentemente, já com o conflito em curso, advogou que não se deve "humilhar" a Rússia, e, apesar das suas públicas reticências ao processo de adesão da Ucrânia à UE, acabaria por, já este mês, deslocar-se a Kiev, juntamente com o chanceler alemão, Olaf Scholz, e o chefe de Governo italiano, Mario Draghi, para dar o seu apoio à atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia.

Apesar de 'sacudida' pelo regresso da guerra à Europa, a presidência francesa obteve vitórias em vários dossiês legislativos importantes, com destaque para os acordos fechados em torno da Lei dos Mercados Digitais - que regulará a concorrência nos mercados digitais, prevendo pesadas multas para as plataformas que não cumprirem -- e a Lei dos Serviços Digitais, que obrigará as plataformas 'online' a moderar os conteúdos e a tornar os algoritmos mais transparentes, sob risco de pagamento de multas milionárias.

Entre outras conquistas da presidência semestral francesa, contam-se a reforma do mercado europeu de carbono, o compromisso em torno da diretiva sobre salários mínimos justos, e o acordo em torno de um mecanismo de solidariedade voluntário para com os países do Mediterrâneo no acolhimento de migrantes, entendido como um primeiro passo na reforma da política migratória e de asilo europeia.

Do lado oposto, entre os dossiês legislativos que Paris considerava prioritários e contava fechar durante o seu semestre, o maior fracasso foi a falta de um acordo entre os 27 sobre a transposição para o direito europeu do compromisso alcançado ao nível da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) relativamente a um imposto mínimo para as multinacionais, para entrar em vigor em 2023.

Depois de ultrapassado enfim o veto polaco -- que Varsóvia levantou apenas quando foi aprovado o seu Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) -, a presidência francesa viu-se confrontada com um inesperado bloqueio de última hora da Hungria, outro país cujo PRR não recebeu ainda luz verde face às (muitas) inquietações de Bruxelas com o Estado de direito no país.

Este veto alimentou ainda mais o debate sobre as regras da UE e designadamente a necessidade de ser abandonada a necessária unanimidade na aprovação de decisões nalgumas áreas, designadamente de política externa, para que o bloco não fique refém de um só país, e muitas vezes por motivações completamente estranhas aos assuntos em questão.

Contudo, e apesar da ideia de uma "comunidade política europeia" lançada por Macron durante o semestre, a reflexão sobre a gestão da UE, sobretudo se o bloco vier a alargar-se, e eventuais alterações aos Tratados passará para as próximas presidências, a começar pela checa, cabendo a Praga - que sucede a Paris na liderança semestral do Conselho da UE já na sexta-feira - dar seguimento às ideias avançadas por ocasião da Conferência sobre o Futuro da Europa, iniciada durante a presidência portuguesa, no primeiro semestre de 2021, e concluída durante a francesa.