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Disputas de controlo das áreas marítimas têm feito escalar conflitos

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Foto Shutterstock

As disputas de controlo das áreas marítimas têm feito escalar conflitos, à medida que as potências mundiais reclamam novas fronteiras e direitos exclusivos, como acontece no Ártico ou no Mar do Sul da China, segundo analistas ouvidos pela Lusa.

Ao longo dos últimos dois anos, os episódios de atrito militar entre as forças navais e aéreas de Washington e de Pequim aumentaram exponencialmente nas águas do Mar do Sul da China, com relatos de ameaças de confronto direto e episódios de alegados problemas de comunicação.

Durante uma recente visita do Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, à Coreia do Sul e ao Japão, a China lançou manobras militares no Mar do Sul da China, numa evidente atitude de desafio por parte das autoridades de Pequim em relação a Washington.

A China reclama para si o Mar do Sul da China na sua quase totalidade e essa região marítima tem sido um ponto de frequentes conflitos na região asiática.

Os EUA insistem que têm o direito de operar livremente nessas águas e frequentes vezes colocam os seus navios da sétima frota na proximidade de ilhas controlas pela China, que sistematicamente protesta contra essas missões, considerando-as "provocatórias e desestabilizadoras".

O Brunei, a Malásia, as Filipinas e Taiwan também reclamam controlo de parte das águas do Mar do Sul da China e vários especialistas consideram que a disputa está muito longe de se resolver, podendo mesmo tornar-se palco de conflitos de maior dimensão.

"A China está a aumentar substancialmente a sua capacidade militar, em particular no setor da Marinha, criando perceções de risco como nunca vimos até hoje, em particular o Mar do Sul da China", disse à Lusa Nan Tian, investigador do Stockholm International Peace Research Institute, numa conversa em plena contagem decrescente para a Conferência sobre os Oceanos das Nações Unidas que Portugal acolhe de 27 de junho a 01 de julho.

Um relatório do Congresso dos EUA, divulgado em janeiro, considera o Mar do Sul da China como uma "arena privilegiada de concorrência estratégica" entre Washington e Pequim, recomendando ao Governo um mais intensivo apoio aos aliados na região.

O historial de recentes incidentes militares entre a China e os EUA no Mar do Sul da China é longo e tem vindo a aumentar de tensão ao longo dos últimos dois anos, com confrontos diretos, como em julho de 2020, quando Pequim disparou quatro mísseis balísticos na cercania de navios da frota norte-americana, em retaliação ao voo de um avião de espionagem enviado por Washington; ou, mais recentemente, em janeiro, quando as autoridades militares chinesas perseguiram um navio norte-americano que acusaram de "ações provocatórias".

Nan Tian considera que se tornou elevado o risco de uma crise militar grave provocada por uma colisão não intencional ou por um gesto mal calculado de uma das partes, tendo em conta o avolumar de situações de confronto na região.

O Oceano Ártico é outra região com elevado potencial de alavancar conflitos entre grandes potências, neste caso, em particular entre os EUA e a Rússia.

Katarzyna Zysk, especialista em temas de Defesa, no Instituto Norueguês de Estudos Militares, defendeu que a Rússia está interessada em "fazer uma limpeza estratégica" de ameaças externas na sua zona de influência no Ártico.

Na eventualidade de uma guerra nuclear, os mísseis russos (como o hipersónico Kinzhal) com destino a alvos na América do Norte (Canadá ou EUA) terão de passar pela zona do Ártico, pelo que Moscovo quer assegurar-se de que as suas armas não são intercetadas por forças dos países nórdicos ou canadianas na região.

Isso ajuda a explicar porque recentemente, a propósito do pedido de adesão da Suécia e da Finlândia à NATO, o Presidente russo, Vladimir Putin, disse claramente que a sua maior preocupação era a colocação de bases militares ou de mísseis da Aliança Atlântica naqueles países nórdicos.

Em declarações à Lusa, Zysk explicou que, em parte, este aviso de Putin se relaciona com o receio de Moscovo de que a NATO possa aumentar a sua presença junto ao Oceano Ártico, onde a Rússia possui uma "frota obsoleta e com flagrantes faltas de equipamento e de pessoal".

O Canadá tem reforçado os seus meios militares na região do Ártico, com diversas parcerias com os EUA, para criar mecanismo de dissuasão relativamente a eventuais ambições de expansão da influência russa nas águas junto ao Polo Norte, provocando reações duras por parte do Kremlin.

Em março, sete membros do Conselho do Ártico -- um fórum de nações com controlo sobre águas e territórios na região -- anunciaram que tinham cortado relações com a Rússia, que atualmente lidera este organismo, invocando a invasão russa da Ucrânia.

Este boicote dos países do Ártico à Rússia pode ser mais um contributo para uma relação tensa na região, explicou Kararzyna Zyks, lembrando que os países nórdicos não escondem algum nervosismo com a forma como as autoridades russas têm procurado militarizar a região.

Em maio de 2021, um avião de carga russo aterrou na base Franz Josef, num arquipélago perto do Polo Norte, transportando mísseis de longo alcance para reforçar a presença militar no Ártico, com os serviços de informações ocidentais a denunciarem que Moscovo pretende renovar a Frota do Norte na região (depois de a quase ter abandonado na queda do regime soviético).

Em resposta, nos últimos meses, os EUA têm entregado material de guerra, incluindo quatro bombardeiros B1, à Noruega, para reforço do patrulhamento do Oceano Ártico.

Com o gelo e a neve a derreter junto ao Polo Norte, consequência das alterações climáticas, a região ganhou novas rotas de passagem para navios, permitindo a facilitação de recolha de hidrocarbonetos e de reservas de minerais, mas também alterando as zonas de domínio de águas dos países que reclamam controlo naqueles mares.

Mudando de zona geográfica e marítima, a recolha de hidrocarbonetos é também um dos pontos de atrito no Mediterrâneo Oriental, sobretudo depois de a Turquia ter emergido como um ator agressivo na região, recusando aceitar as zonas económicas exclusivas (ZEE) da Grécia e de Chipre.

Entre 2011 e 2015, foram descobertas importantes reservas de gás natural nas costas de Israel, Egito e Chipre, bem como nas zonas circundantes de muitas ilhas gregas no Mar Mediterrâneo e no Mar Egeu.

Junte-se a este facto a intervenção militar da Rússia na Síria, após 2015, e percebe-se melhor como o Mediterrâneo Oriental se tornou um palco de conflitos latentes e reais entre diferentes interesses, com a União Europeia (UE) e os EUA ao lado das pretensões da Grécia e Chipre, na proteção das suas ZEE, e com a Turquia no papel de potência intrusiva.

Neste conflito, que se agravou nos últimos anos, Grécia e Chipre confiaram sempre no apoio do Kremlin a contrariar a posição das autoridades turcas, apesar da boa relação entre Ancara e Moscovo e de a Turquia fazer parte da NATO.

De resto, as disputas no Mediterrâneo Oriental têm sido um dos pilares do atrito entre Ancara e Washington, com o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, a criticar publicamente a posição norte-americana sobre as pretensões gregas e cipriotas de acesso exclusivo ao gás natural na região.

"Quando queremos compreender por que razão Ancara comprou material militar russo, apesar de pertencer à NATO, encontramos neste cenário de conflito mediterrânico a explicação. Ancara quis retaliar contra a posição de Washington e de Bruxelas", explicou à Lusa, Silvia Negreti, investigadora italiana do Centro Europeu para Análise Política (CEPA).

Neste conflito mediterrânico, para além de Grécia, Chipre e Turquia estão envolvidos numerosos atores diretos ou indiretos, como Alemanha, França, Itália, Egito, Líbia e Israel.

Desde 2019 que a Turquia tem enviado navios de guerra para águas cipriotas, em movimentações que a UE tem condenado e sancionado, nomeadamente quando, nesse mesmo ano, Bruxelas decretou medidas sancionatórias contra indivíduos e empresas "responsáveis, ou envolvidas, em atividades não autorizadas de perfuração de hidrocarbonetos".

No segundo semestre de 2020, as tensões entre Grécia e Turquia (ambos membros da NATO) escalaram, em particular depois de Atenas ter assinado um tratado marítimo com o Cairo, em contradição com os interesses de Ancara.

Em 12 de agosto de 2020, uma fragata turca entrou mesmo em confronto direto com uma fragata grega, levando o Presidente francês, Emmanuel Macron, a reforçar a posição militar do seu país na região, enquanto os Emirados Árabes Unidos enviavam meios aéreos para a ilha grega de Creta, para operações militares conjuntas com a NATO, num sinal evidente da preocupação com a situação.

"O Mediterrâneo Oriental é mais uma 'bomba-relógio', que pode explodir a qualquer momento. Apesar dos esforços diplomáticos ocidentais, a situação está 'presa por fios' e ameaça tornar-se o epicentro de um conflito de larga escala", concluiu Silvia Negreti.