Crónicas

A guerra

São como eu, como muitas pessoas que conheço, mas nós, os que estamos deste lado, não temos a vida interrompida

Perdi a conta às cidades destruídas, às imagens de escombros e de pessoas em fuga. Tenho 51 anos e cresci com a televisão a dar as notícias de conflitos, a mostrar um mundo onde, com frequência, a vida das pessoas comuns era interrompida por bombas e desavenças étnicas, culturais e políticas. Lembro-me de Beirute, das notícias de soldados gaseados na guerra Irão-Iraque, da guerra civil em El Salvador e de como, por detrás de cada morte, se jogava o equilíbrio de poder entre americanos e russos.

O mundo da minha adolescência estava dividido entre russos e americanos. A meio existia um muro, uma cortina de ferro que, na Europa, separava o Ocidente do Leste e que parecia impossível de transpor. Ou era preciso muita coragem para a atravessar e os povos que viviam a Leste pareciam condenados a viver até ao fim dos tempos debaixo da lei dos russos.

Por lá não havia eleições, não se podia desafiar a ordem sem arriscar uma intervenção e lembro-me das greves em Gdansk e de como durante muito tempo se esperou ver os tanques soviéticos a atravessar a fronteira da Polónia. Quem podia fugia, alguns morreram na fuga e os outros aguentaram até tudo ter começado a mudar no verão dos meus 18 anos.

Sei que, três décadas depois, pode soar estranho a alegria inocente que senti ao ver as imagens pela televisão, as imagens de que podia ser diferente. A coragem daquelas pessoas que, na rua, ajudaram a mudar o destino foi dos momentos mais bonitos que a televisão me deu. E a mudança não parou ali. Em menos de dois anos, a Europa transformou-se e a Leste deixou de existir um bloco único.

Foi um sonho breve, esse de que o futuro seria mais fácil. Aos 20 anos acreditamos que a vida e o mundo são simples e, em pouco tempo, vi chegar a primeira vaga de imigrantes, os homens para as obras; as mulheres para o serviço doméstico. Alguns deixavam profissões importantes para trás, procuravam dinheiro, uma saída que não tinham nos países que emergiram do fim da União Soviética.

Mas em 30 anos nada fica igual e, aos poucos, o Leste encontrou um caminho, modernizou-se, ficou mais rico e agora vejo chegar turistas para apreciar as belezas da Madeira, para tirar selfies e partilhar nas redes sociais. E nisso somos agora mais parecidos, mais próximos do que éramos antes, quando eu tinha 18 anos. Sei que lá, na Ucrânia, as pessoas apenas querem viver com conforto, que amam os filhos e que, na fuga para a chegar à fronteira e na corrida para os abrigos, levam o que lhes é querido: a família e os animais de estimação.

São como eu, como muitas pessoas que conheço, mas nós, os que estamos deste lado, não temos a vida interrompida, não fugimos das bombas, não temos a casa em escombros, nem nos despedimos dos rapazes e dos homens que vão para a frente e podem morrer. Isso não sabemos o que é e, por isso, devemos respeito e solidariedade.