Análise

A reles arte de desperdiçar talentos

A ‘arte’ de desperdiçar talento em Portugal é enervante. E não é só por causa da cruel eliminação da selecção nacional do Mundial do Qatar. Mas também. Dentro e fora de campo, demos cabo de uma geração de craques por termos visão redutora e uma inveja letal. Permitimos que a mesquinhez vencesse a gratidão, que o experimentalismo substituísse a estratégia e que a arrogância rasteirasse a humildade. Até houve quem aplaudisse o escárnio ao capitão da nação futebolística num manifesto desrespeito pela memória colectiva. Fomos todos derrotados, mas porventura vencedores se quisermos aprender com erros de palmatória. Só que a vida real continua, agora sem ópio, distracções e desculpas, e de preferência sem o contágio das anomalias detectadas no jogo milionário nas outras dimensões da vida social.

Importa por isso não desperdiçar talentos por um sem número de atrocidades, entre as quais a teimosia fiscal. Há quem considere que a falta de mão-de-obra no sector do turismo se resolve apenas com salários mais altos. Quem como nós tem andado em congressos da especialidade constata que a disponibilidade para maior justiça laboral esbarra na constatação que em muitos casos os salários brutos em Portugal não são muito distantes dos que são praticados na Europa, mas baixam consideravelmente por efeito dos impostos. Impõe-se assim a urgente diminuição na carga fiscal em relação ao factor trabalho, caso contrário, ganhar mais é uma ilusão.

Importa não desperdiçar talentos por manifesta incapacidade de liderança e de bons exemplos, drama que ganhou por estes dias dimensões de outra estirpe com os surpreendentes casos de corrupção que geram desconfianças nas instituições ou com as formas levianas de gerir os dinheiros públicos que atentam contra a credibilidade das estruturas de poder.

Importa não desperdiçar talentos à boleia da comodidade ou do frequente desejo de haver mais Estado naquilo que devia estar mais entregue à iniciativa privada. A este nível, esperemos que a versão madeirense da SEDES – que é uma associação cívica, formada por gente de vários quadrantes preocupada com o humanismo, com a democracia e com o desenvolvimento económico e social -, consiga elevar o nível de intervenção cívica, reduza a partidarização de tudo o que mexe aos palcos já existentes e se torne necessária no pensamento sustentado do futuro. Se quiser, tem muito trabalho para fazer, desde que não se resuma a ser mais um palco para exibição política, pois precisamos ainda de crescer em muitas áreas do debate público, sendo importante incentivar a cidadania empenhada na gestão muitas vezes entregue a mãos alheias.

Importa ainda não desperdiçar talentos com discussões inúteis e ataques inflamados sem nexo, esperando nós que, nesta semana de debate do Orçamento Regional, o ‘cartoon’ desta página em jeito de antevisão não corresponda à realidade. O debate deve ser honesto, e as promessas ou amuos não devem comprometer o guião para 2023, por muito que já esteja quase tudo decidido.

Desperdiçamos talentos sempre que denunciamos problemas sem procurar partilhar soluções adequadas, quando não premiamos quem merece ou só damos valor aos que fazem a diferença quando estes partem para outras paragens. Talvez seja chegada à hora de mudar de plano se é que queremos estar habilitados a ser importantes e decisivos.