Carta a Saramago

Amigo Saramago,

Por ocasião da comemoração do teu centenário, não será esta a melhor homenagem que te é prestada. Também não será a pior: conheço-te o suficiente para saber que preferes sinceridade a pretensiosos salamaleques.

Escrevo-te porque me sinto no dever de te informar que a nossa mater língua está ameaçada, logo o teu legado seriamente comprometido, apesar de instituído em ministeriais programas educativos. Não serve de conforto, eu sei, mas o mesmo sucede a tantos outros vultos teus vizinhos da nossa sublime literatura.

Na verdade, trilhando o sistema educativo, constato que as novas gerações estão a ser preocupantemente privadas de desenvolver competências básicas de leitura e de escrita, ao subtrair-se-lhes a primordial ferramenta livro do processo de ensino-aprendizagem.

Não te suponho surpreso se te disser que, no cerne deste mal que alastra, estão desedificantes políticas deseducativas, metodicamente implementadas, em que os agentes das pedagogias se vergam e morigeram ao serviço dos interesses reinantes das tecnologias. Consequentemente, a educação dos jovens estudantes tem vindo a ser formatada pela luminescência digital, em que a norma instituída é veicular-se saberes fragmentados através de pequenos e impessoais ecrãs. E é com a mesma superficialidade de ler imagens que eles deslizam os seus dedos sobre as carcaças ocas das palavras. E é com convicta desolação que constato que a nossa tão vasta e rica língua portuguesa se lhes vai afigurando indecifrável, incompreensível, impenetrável e ininteligível. Assim se empobrece e condiciona o comunicar, o conhecer, o saber, o pensar e o ser das novas gerações. Admitindo-se o inadmissível, a educação que tem sítio no estado em estado de sítio se encontra.

Posto isto, vendo bem as coisas, a ininteligibilidade das tuas obras e de quaisquer outras manifestações artísticas, sejam elas literárias ou de outra natureza, será um mal menor; pois acho que não exagero ao dizer que se adivinha um retrocesso no curso evolutivo e civilizacional da espécie humana.

Saramago amigo, tu que já eras prémio antes de seres Nobel. Sobrevirá lucidez aliada a vontade e poder que coloque travão a esta cegueira coletiva? A ver vamos.

Maria Morais