Madeira

Bispo do Funchal reflectiu ontem sobre a "era da pandemia"

Foi na missa de final de ano e 'Te Deum' que D. Nuno Brás fez um balanço de 2021 e perspectivou um 2022 com Deus

None

O Bispo do Funchal deu conta de que a presença de Deus, mesmo nos momentos de maior sofrimento, poderá ajudar a encarar a vida com outro ânimo e, sobretudo, com maior proximidade dos outros e de nós próprios.

Foi na missa de final do ano e ‘Te Deum’, que teve lugar ontem, na Sé do Funchal, que D. Nuno Brás reflectiu sobre a importância da presença de Deus em diferentes momentos e contextos da vida humana.

Olhando para o presente pandémico, o Bispo do Funchal não deixou de notar que, para muitos, a covid-19 poderá ser usada como uma ‘prova’ de que Deus não está junto dos seus súbditos, para os deixar sofrer desta forma, à semelhança das acusações que muitos eruditos europeus apontaram aquando do terramoto de 1755, em Lisboa.

Mas, para esses, “a resposta àquela interrogação essencial (como é que Deus permite o sofrimento?) só pode ser vislumbrada se retirarmos todas as consequências do anúncio evangélico que acabámos de escutar: «O Verbo fez-se carne e habitou no meio de nós» (Jo 1,14)”, disse D. Nuno Brás perante uma catedral cheia.

No início da homília, o bispo usou as palavras do pensador norte-americano Francis Fukuyam, em ‘O fim da história’, para evidenciar “o modo como nós, habitantes do mundo ocidental, olhávamos até alguns meses atrás para a nossa vida e para a nossa civilização. Nada nos poderia derrotar. Todos nos desejavam (e deveriam) imitar”.

O nosso mundo tinha-se tornado, mesmo sem ter consciência disso, na realização da parábola evangélica do homem rico cujas propriedades produziram com abundância, e que pensava consigo: “Farei isto: derrubarei os meus celeiros e edificarei outros maiores, e ali recolherei todos os meus cereais e os meus bens; e direi à minha alma: Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe, regala-te. Mas Deus disse-lhe: Insensato, esta noite pedir-te-ão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” (Lc 12,18-20). A que Jesus acrescentava: “Buscai antes o Reino de Deus, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Lc 12,31). D. Nuno Brás, Bispo do Funchal

Segundo D. Nuno Brás, há dois anos atrás, perdurava o sentimento de que ”vivíamos no melhor dos mundos. Faltavam, simplesmente, alguns pequenos acertos, que a ciência e a técnica se encarregariam de introduzir. Poderíamos, por isso, declarar que a história tinha atingido o seu ponto alto e final”.

Mas a covid-19 e os mais de cinco milhões e meio de mortos por ela causados vieram levantar novas questões e fazer com a vida tenha de ser encarada de outra perspectiva. “Se as vacinas nos protegem em larga medida, creio, no entanto, que ninguém hoje deixará de pensar: se este é o melhor dos mundos, bem pouco é o que conseguimos”, referiu o bispo.

E quanto à dúvida da presença de Deus perante este cenário de sofrimento, D. Nuno Brás apelou a que olhássemos, também, para a forma como Deus se fez carne e à “realidade frágil, mortal, limitada e sofredora daquele homem concreto que é Jesus de Nazaré”, através do qual “Deus é um Deus connosco”.

“Que o mesmo é dizer: o sofrimento e o limite; a fragilidade e a finitude que marcam o humano, são experimentados, vividos por Deus em primeira pessoa. Em Jesus, Deus sabe o que é sofrer, e o que é sofrer injustamente; Deus sabe o que é morrer, e morrer na solidão, abandonado por todos; Deus sabe o que significa ser condenado injustamente, no meio de jogos políticos ou de comunicação, crucificado na praça pública.”, referiu o bispo.

Deus quis fazer seu todo o drama humano, do nascer ao morrer, “tornando-se, assim, próximo de todos os que sofrem”, lembrou o Bispo do Funchal. Dessa forma, “fez seu, não apenas o drama comum de qualquer indivíduo humano, mas também o drama social, as dilacerações e todas as mortes de que padeceu, padece e padecerá a humanidade em toda a sua história. Na cruz de Jesus, a morte é o peso do sofrimento humano que cai sobre Deus”.

Por isso, D. Nuno Brás fez questão de destacar a importância da presença de Deus mesmo quando um homem está em sofrimento. “Compreenderam-no bem os nossos antepassados madeirenses quando, no meio da dureza que sempre significou viver nesta Ilha, foram marcando a sua vida pela proximidade a Deus”, apontou.

“A sociedade madeirense escolheu viver o seu drama humano acompanhada por Deus. E essa mesma escolha a precisamos nós de realizar — cada um de nós e o todo do nosso tecido social. Porque não nos basta ser herdeiros de uma tradição; importa que a liberdade de cada um se deixe iluminar pela graça que é o dom do Espírito Santo, e realize hoje e para a sua vida esta opção que respeita a cada um e a todos: queremos ser com Jesus Cristo, o Deus que sofre connosco e que nos aponta o caminho da vida, e com Ele, moldar a nossa existência. Não queremos viver solitários o percurso do tempo, procurando com a nossa sabedoria uma saída no meio do labirinto da existência”, afirmou o bispo.

E mais do que perguntarmos onde está Deus no meio da pandemia, será questionarmos onde está o homem, “onde estamos nós?”. “Quer dizer: que ser humano estamos disponíveis para ser? Que sociedade humana queremos construir? Com Deus, aceitando a sua proximidade, os apelos e as exigências do “Deus connosco”, ou orgulhosamente sós, confiando nas nossas capacidades e conquistas, construindo por nós e para nós, com as nossas forças e saberes, o que achamos ser “o melhor dos mundos possíveis”, mas constantemente derrotados por este ou por um qualquer outro vírus minúsculo ou maiúsculo (quer dizer: um minúsculo vírus natural, como o covid-19, ou um “maiúsculo” vírus social que grassa no meio de nós e mata como epidemia bem maior — como o vírus do egoísmo, do orgulho e da soberba humana, que ignora todos os demais e as suas situações concretas, desde que o próprio viva descansado e regalado)? Que humanidade queremos ser e construir? Com quem o queremos fazer?”, foram algumas das questões deixadas por D. Nuno Brás na homilia.

Em jeito de balanço do ano 2021 e preparando a chegada de 2022, o Bispo do Funchal falou de um “ano de particular luta e de muitas derrotas”, na chamada “era da pandemia”.

E embora muitos tenham sido os momentos de interrogação “sobre o que fizemos de mal para sofrermos assim, castigados por um pequeno vírus”, também tivemos “a possibilidade de quase tocar Deus em tantas circunstâncias: desde o testemunho daqueles que, esquecendo-se de si, se fizeram presença do amor divino, de modo particular junto dos doentes; até ao testemunho de fé do povo simples que escolheu continuar a confiar em Deus e a entregar-lhe a sua vida; passando pela valorização das relações directas entre pessoas, fartos que nos descobrimos dos encontros virtuais”, lembrou.

Num ano em que o valor do outro foi apreendido de forma mais intensa, “aprendemos, afinal, a deixar que Deus nos visite no hoje da nossa vida e lhe dê um novo e definitivo sentido”.

Em jeito de repto final, D. Nuno apelou a que “aprendamos a perceber e a viver esta meta última e definitiva que o próprio Deus nos apresentou na sua encarnação: deixemos que, partilhando a nossa existência, Jesus Cristo nos ensine, ao longo de 2022, o modo de viver definitivo e excelente, a concretização do desígnio que o próprio Deus propõe a cada um e a toda a nossa sociedade”.