Crónicas

Foi-se um dos melhores, um craque

Lisboa ainda era uma massa de prédios e ruas quando, por causa de um trabalho para a faculdade, me meti num táxi para a Quinta do Lambert, dei o número da porta ao taxista e tentei manter a calma. Tinha custado muito chegar até ali, ao mais novo jornal do País para ter uma entrevista cara a cara com o diretor que todos os jornalistas, aspirantes a jornalistas e projetos de jornalistas (como eu) admiravam e queriam ter como chefe.

Esse mesmo, o Vicente Jorge Silva, então à frente do Público, que, nessa primavera de 1990, liderava a esperança do que devia e podia ser o jornalismo. Eu comprava o jornal quase todos os dias e conhecia  de cor o nome dos repórteres e redactores assim como os miúdos conhecem os craques das equipas de futebol. Tinha-os a todos como grandes, mestres perfeitos naquele jeito de nos levar pela mão para ver o mundo através das páginas do jornal.

Foi um desses craques, o Fernando Dacosta, que acertou a entrevista depois de eu ter gaguejado um pedido para o atendedor de chamadas. O atendedor de chamadas era coisa de filmes e eu mal sabia o nome das ruas de Lisboa, mas acho que aqueles homens, gente de nome e prestígio, que fizera carreira no Expresso e no Jornal, tinha um carinho muito grande pelo “Comércio do Funchal”,o velho jornal cor-de-rosa onde a aventura tinha começado, quando eram novos, entusiasmados e cheios de energia para fintar a censura.

Lembro-me de que, nesse dia, havia muita agitação por causa de um descarrilamento de um comboio na linha de Sintra, mas nem por isso se adiou a entrevista. Tive só de esperar na sala onde ficavam os grandes repórteres e os redactores principais, o que na gíria dos jornais, significa esperar na sala dos grandes, dos melhores e mais experientes. E todos acharam graça que uma miúda de 19 anos quisesse saber como era um jornal que já não se publicava, que fora importante para eles, num tempo que era comum dizer-se que já não interessava à gente nova.

Eu queria saber, queria mesmo perceber como é que esse jornal regional e insular fizera sucesso no continente, como é que juntara tanta gente, tantos talentos. Queria saber para o trabalho da faculdade e queria saber por mim, pela rapariga do Laranjal que se lançara no mundo atrás de um propósito. E sei que entrei a medo no gabinete do Vicente Jorge Silva, que, nesse dia, gritava com os fotógrafos, não tinham trazido uma fotografia a cores do acidente em Sintra. A preto e branco já os vespertinos tinham e ele queria ganhar com a edição do dia seguinte.

Entre os berros e as ordens, os telefonemas que chegavam e o café que veio para se fazer melhor a entrevista, o Vicente falou do seu “Comércio do Funchal”, de como era mais fácil enganar a censura no Funchal, de como depois a revolução devorou o projecto, quando se iniciou um combate ideológico entre os que eram pela revolução cultural chinesa, os apologistas da Albânia e os outros que puxavam mais pelos russos. E como tudo isso matou o que era o “Comércio do Funchal”, isso e, claro o fim da ditadura.

Enquanto durou, aquele semanário foi a voz mais arrojada e livre do país, que tanto fazia análise política como crítica de cinema, que animou uma geração e provou que a censura é sempre mais eficaz quando atemoriza quem escreve, quem edita e quem está à frente dos jornais. O Vicente não tinha medo, não tivera medo antes, quando havia censura, não tinha medo em 1990, quando era já o mais respeitado diretor de jornais.

E, pouco antes de me vir embora - a edição do dia seguinte começava já a deixá-lo nervoso – lembro-me de o ver a limpar os óculos e a ser tomado pelo frenesim do trabalho, da primeira página e lembro-me de ter pensado que queria aquela inquietação, aquele brilho nos olhos, aquilo de gritar por causa das fotografias, por tudo o que se consegue e pelo que falha. E isso, isso que é ser jornalista, mostrou-me o Vicente naquela tarde de há 30 anos

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