Crónicas

A vida dura lá por cima no Laranjal

Em casa, a minha mãe fazia o que conseguia. Bordava de manhã, de tarde e vivia da comissão da casa de bordados.

A nossa vida não era fácil lá por cima no Laranjal, onde o frio apertava nos dias de Inverno e o calor subia pelas paredes e não nos deixava dormir nas noites de Verão. As horas demoravam a passar e a vista de cima do terraço era sempre a mesma: o mar, os telhados da cidade, o Pico dos Barcelos, a curva do caminho, a paragem e a entrada para o beco, os eucaliptos do Poço das Freiras, as casas dos vizinhos e as bananeiras na fazenda do meu avô. E mudava pouco no que havia para fazer.

A minha mãe arrastava-se da cama às seis da manhã. Lembro-me de ouvir a porta do quarto a chiar, da confusão que se seguia em casa, mas antes das sete o meu pai estava a descer a entrada com o almoço e o café dentro de uma garrafa de calor, pronto para mais um dia de trabalho nas obras. Nunca era no mesmo lugar, nem com o mesmo patrão, era onde havia. O meu pai tinha o hábito que nos deixar em pânico de cada vez que mudava ou quando passava três dias à procura, a ver quem precisava de um mestre para mudar a cozinha ou arranjar o telhado.

Em casa, a minha mãe fazia o que conseguia. Bordava de manhã, de tarde e vivia da comissão da casa de bordados. Todas as quartas-feiras, apanhava o horário das duas e atravessava a Rua Bela de São Tiago com vários embrulhos e a carteira ao ombro. Enquanto o Sr. António fazia as contas, aproveitava para fazer as voltas, para ir à farmácia o ao supermercado. O Laranjal ficava a meia hora de autocarro, numa viagem de pára e arranca, travagens a fundo e curvas acentuadas. A minha mãe não estava para andar abaixo e a cima e não tinha passe, uma vez por semana tratava de tudo o que havia para tratar.

Lembro-me de me sentir infeliz e com pouca sorte por causa disto, desta vida assim seca. Eu não gostava de carregar os sacos dos bordados, nem de varrer o quintal e os três lanços de escadas ou limpar o pó, fazer as camas e lavar a loiça todos dias. As miúdas da escola no máximo faziam bolos, mas só por gosto. E ninguém falava das vezes que limpava a cozinha e as vidraças, ninguém tinha uma mãe que dava bordados. Acho que nem sabiam o era isso de dar bordados. As mães ou eram donas de casa ou tinham profissões fáceis de explicar como professora, secretária, empregada de escritório. E os pais não eram mestres, não andavam de furgonetas, nem levavam o almoço de casa.

A vida das outras parecia-me melhor, tinham treinos de natação, aulas de Inglês na Academia, lanches ao fim de semana e passeios de fim de tarde ao domingo com o pai que era bancário e a mãe professora, mais o irmão que andava na vela e tinha estilo de actor. Pelo menos nas fotografias que às vezes mostravam no intervalo, mas nisso o meu irmão ganhava, que tinha cabelo a imitar o James Dean e escrevia versos. Uma vez até saiu um poema num suplemento literário do Diário de Notícias, mas quem ficou mesmo vaidosa foi a minha mãe. O filho, que nem era aluno brilhante, tinha dado poeta, escritor.

A minha mãe, que passava o dia a bordar, tinha isto de apreciar a arte, como o meu pai que gostava de ver um maestro a dirigir uma orquestra, eram assim coisas de categoria. De trabalho duro todos os dias, isso sabiam eles o que era e não tinha graça. O meu irmão escrever versos e eu tirar boas notas, isso era outra coisa, daquelas que não conseguiam explicar bem, mas que lhes parecia diferente da nossa vida no Laranjal, onde a paisagem era sempre a mesma e os dias variavam pouco. E, no fim, desculpavam-me por passar a tarde com o nariz enfiado nos livros que não eram da escola, desculpavam-me quando não lavava a loiça. Só não me desculparam as notas abaixo

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