Crónicas

A liberdade numa gaiola

«Até os bois sob o jugo andam gemendo E na gaiola as aves vão chorando.» Étienne de La Boétie

Algures entre a razão e a emoção, existe um longo corredor repleto de gaiolas douradas, onde guardamos secretamente todas aquelas atitudes e sentimentos que foram saneados do nosso comportamento diário. E nesse lugar que oscila entre o sagrado e o maldito, estão a provas mais do que evidentes da delapidação da nossa liberdade individual.

Liberdade de pensar.

Durante anos, ele fez o que o mandaram fazer. Mesmo sabendo que algumas coisas não eram as mais acertadas. Nunca questionou. Nunca ousou contrariar uma ordem. O soldo ao fim do mês era o suficiente para viver. Trabalhava num sítio onde não lhe era permitido pensar. Apenas fazer o que mandavam fazer. Calou-se. Trancou todos os impulsos numa ornamentada gaiola dourada.

Liberdade de exigir responsabilidades.

Bastou apenas uma vez para perceber que não tinha argumentos, nem força, para enfrentar gigantes. Convenceu-se que aquela velha e inspiradora história do David e do Golias não passava disso mesmo. De uma história. E de nada lhe valeu fazer uma espera à porta do prevaricador. Foi logo ameaçada com advogados e processos. Perante a intimidação, calou-se. Perdeu o emprego, baixou os braços e carregou para o resto da vida aquele sentimento de injustiça que, de vez em quando, se agita freneticamente numa gaiola dourada.

Liberdade de falar.

Asfixiou as palavras numa garganta inflamada pelo ultraje. Testemunhou injustiças, presenciou atos de verdadeira crueldade e não teve coragem para levantar a voz ou apontar o dedo. Perante as atrocidades cometidas aos outros e pelos outros, deixou-se ficar no seu canto. Mas o mundo dá muita volta e quando sentiu na pele aquilo que outrora tinha testemunhado, não havia ninguém para o defender. Sentiu-se desamparado e desejou, mais do que nunca, ter um herói dos filmes para o defender. Esqueceu-se que também ele poderia ter sido um herói para os outros. Em vez disso, tornou-se num cúmplice que mais tarde soube o que era ser vítima.

Liberdade de escolher.

Perante a encruzilhada de caminhos que, mais tarde ou mais cedo, encontramos na vida, há que ter a lucidez de escolher qual deles percorrer. Ou simplesmente, abrir o seu próprio caminho. Entre a direita e a esquerda, sou obrigada a escolher porquê? E se não quiser fazer parte de nenhum, há algum problema? Desde que a minha consciência dite os meus passos, a liberdade é minha e não pode estar condicionada a ameaças veladas, seduções baratas ou acenos de cabeça a dar indicações sobre esta ou aquela direção. Um punhado de ideologias que o ser humano desvirtuou quando as retirou do papel e as colocou em prática. «O meu partido traiu-me». A frase é de um amigo desmotivado que continua fiel aos princípios basilares daquela que foi uma grande organização partidária, esventrada e delapidada pelos homens que não souberam preservar a identidade e integridade de uma bandeira.

Liberdade de criticar.

Sem medos e sem rodeios. A critica faz-nos questionar, analisar, conduz-nos a uma introspeção valiosa. Há sempre condicionantes que fazem com que a crítica seja ridicularizada. Geralmente, utilizam-se rótulos para retirar credibilidade a quem critica. A vontade de intervir vai esmorecendo, à medida que os ataques se intensificam. «Ter razão é fácil. Perceber que outros a têm, eis o problema». Uma lição do pensador brasileiro Mário da Silva Brito que espelha na perfeição a dificuldade que existe entre o saber ouvir e compreender a crítica e o culto do ego desmesurado que tudo pode e nada admite.

Liberdade de agir.

Perante uma sociedade que não foi educada, nem esclarecida para essa coisa chamada Liberdade, em que vícios do passado continuam bem patentes 44 anos depois, há que não ter receio de intervir e de demonstrar que não há donos absolutos da verdade. O relativismo, as condicionantes, as atenuantes, fazem parte do processo de análise e de escolha. Não basta ouvir de forma impávida e serena um representante do povo dizer barbaridades sobre os mortos dos outros que são mais importantes do que os nossos. Há que agir e fazer ver que nestas lamentáveis desgraças, tem de haver decoro. Respeito. Os mortos não devem servir para fazer politiquices rascas. Mas a liberdade também nos possibilitou presenciar discursos e posições absurdas. É o preço a pagar pelo direito que temos a ser livres. Para o bem e para o mal.

São as gaiolas douradas, sobrelotadas de atitudes que nunca aconteceram, de palavras que nunca foram ditas, de tomadas de posição que se esfumaram. São gaiolas douradas construídas para encerrar aquilo que deveria ter existido, feitas com os materiais que recolhemos da autocensura moldada pela intimidação, pelo conforto e pelo gelatinoso medo. Um cravo numa gaiola, tão bem representado na arte de Bordalo II, numa das ruas do Campo de Ourique.

«Com a perda da liberdade, perde-se imediatamente a valentia. As pessoas escravizadas não mostram no combate qualquer ousadia ou intrepidez. Vão para o castigo como que manietadas e entorpecidas, como quem vai cumprir uma obrigação. E não sentem arder no coração o fogo da liberdade que faz desprezar o perigo e dá ganas de comprar com a morte, ao lado dos companheiros, a honra da glória.» A frase é de Étienne de La Boétie, retirada do seu precioso livro “Discurso da Servidão Voluntária”.