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Crónicas

Meninas

A vida lá por cima no Laranjal era não fácil quando se nascia rapariga e não ficava muito melhor quando se nascia rapaz, mas havia diferenças. E as mães gostavam de lembrar que o caminho não era o mesmo para meninos e meninas. Até a minha que, ocupada com a casa e os bordados e decidida a fazer de mim o que ela não tinha conseguido ser, volta e meia gritava-me para não “escarreirar” como um rapaz.

O que acontecia nas férias, quando a miudagem da vizinhança se metia pelo ribeiro e corria pela fazenda ou quando eu aparecia no quintal tal e qual como um índio dos filmes, com penas na cabeça e uma lança e pegava-me à porrada com os rapazes. A minha mãe teria preferido uma criança mais dócil, o que eu não era. Não gostava de bonecas, nem de bordar e tinha medo da máquina de costura, dava a ideia de que a agulha iria atravessar o dedo.

E, no tempo em que não estava a fazer ou a tentar fazer o que os outros todos faziam - a correr ou a tentar saltar muros sem cair -, enfiava a cabeça nos livros ou metia-me a pensar no futuro, na mulher que queria ser. Claro, eu queria ser linda e magra, mas, mais importante do que tudo, queria mandar em mim para escolher os sapatos e os vestidos. Nada me angustiava mais do que as meias de renda pelo joelho, os vestidos vaporosos e as botas ortopédicas e ter de usar tudo isto ao mesmo tempo.

A minha mãe tinha pouco para contar da sua filha gordinha, que aos 10 anos estava quase a passar-lhe a altura e que não era prendada, que se arrastava para lavar a loiça e varrer o quintal, que nunca sabia fazer conversa com as senhoras dos bordados e morria de vergonha quando se falava de rapazes, de casar e ter filhos. Ou pior, quando olhavam para todo aquele tamanho e perguntavam se já era mulher.

Eu era mulher desde que nascera, o que estava para chegar era só uma coisa esquisita do crescimento, que haveria de tornar os dias mais complicados e fazer a minha mãe e as minhas tias encher a boca com as teorias do que ficava bem a uma rapariga e do que os rapazes podiam fazer. A sorte era a minha mãe gostar de pessoas inteligentes e o meu pai achar que os estudos davam categoria a quem os tinha.

Foi como alguém de sorte que me vi aos 10 anos no autocarro para o 1º ano do ciclo preparatório, com um guarda-chuva dos ficavam pequeninos na bolsa e os avisos todos a retinir na cabeça. Não se fala com estranhos, não se dá conversa a rapazes mais velhos, nem que andem de mota, não se falta às aulas, não se chumba na escola. E se falhar? Se falhar acabam-se os estudos, acaba-se tudo.

Acaba-se tudo. A minha mãe dizia que não devia ter medo, mas soube cedo que não me seriam permitidos erros, nem falhas. Tinha aquela oportunidade, só teria aquela. Não tínhamos dinheiro e eu era rapariga, com as raparigas não se gastava muito dinheiro, nem se deixava emendar os erros. Elas viviam para sempre com as más decisões e os azares, fosse uma gravidez, um noivado desfeito ou um mau casamento.

A vida no Laranjal não era fácil quando se nascia menina, não ficava muito melhor se fossem meninos, mas havia diferenças. Eles podiam andar de mota, chumbar um ano na escola, namorar umas quantas; elas tinham um caminho muito mais estreito, não eram permitidos passos em falso.

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