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Tempos de incerteza

Tudo se complica quando se aproxima a época alta de eleições como agora

A política tem as suas regras. E tal como a lei da oferta e da procura não se altera no parlamento (como geralmente pretendia um antigo deputado). As leis que regem o jogo do poder democrático têm enquadramentos muitos complexos que se não compadecem com simples boas intenções ou proclamação ingénua de sãos princípios.

Ao seguirmos de perto os mecanismos subterrâneos e expressos da campanha eleitoral, regional e nacional, ao escutarmos os ênfases e a promessa dos líderes políticos sentimo-nos como remetidos àquela velha dúvida de estarmos a colaborar num jogo que nada tem de objetivo, antes, apenas esconde secretos interesses de grupos ideológicos económicos e sociais.

Precisamos entender que não é apenas a política que padece destas ambiguidades, quantas vezes perversas. Tudo o que é humano, entretecido de comunicação e marcado por ideais e afetos, mesmo que repensados de generosidade e transparência, se reveste da visão parcial embaciada das coisas e das pessoas.

Precisamos discernir sem dramatismos o discurso ideal, perfeito, otimizado, de palavra concreta, prosaica embora, que acompanha o quotidiano das pessoas, das famílias e das comunidades.

É preciso, pois, não entrar em pânico com a transfiguração quase instantânea dos discursos e comportamentos políticos na sequência das eleições onde o poder pode passar para a oposição e a oposição para o poder.

Não se concluirá que tudo é natural e que tanto vale a verdade como a mentira. Mas importa sempre descobrir os códigos reais que se escondem atrás dos discursos de circunstância. O pecado não está particularmente concentrado na política. Possivelmente, aí, é mais visível que existe em toda a atividade de qualquer ser humano.

Importa, pois, lembrar o maior consenso que existe em torno da política - é que já não é o que era: Uma atividade estimada, dotada de autoridade e prestígio, geradora de entusiamo coletivo, uma delegação de confiança.

Da exaltação da política passámos á desafecção generalizada, quando não em profundo desprezo. Os inquéritos de opinião pública revelam um crescente desencanto que alguns interpretam, erradamente, a meu ver, com absoluto desinteresse-mas que devíamos analisar com mais subtileza. Não estamos perante a morte da política mas no meio de uma transformação que nos obriga a concebe-la e a pratica-la de outra maneira.

Entramos na era da desconfiança, na qual já não se mobiliza positivamente mas se multiplicam os votos de protesto: Não votamos tanto por uma coisa contra alguma coisa a barrar o caminho, a pior e ao pior, para bloquear ou impedir. A capacidade de neutralizar é incomparavelmente maior do que a de configurar. A sociedade aglutina-se mais facilmente em torno da indignação do que da esperança. Isto é sabido dos agentes políticos que por esse motivo preferem insistir na maldade do contrário em vez da vontade própria. Com tal recurso, não é estranho que todo o sistema politico acabe por adquirir conotações negativas. A desconfiança atual está na transformação lógica de uma sociedade que deixou de ser heroica e vive a política sem o anterior dramatismo. Desconfiança não equivale a indiferença: É uma deceção que produz mais distância que abatimento. Uma coisa é a democracia não suscitar demasiado entusiasmo e outra é essa deceção poder significar desapego em relação à nossa forma de vida politica.

Por exemplo, o facto de os jornais ou os partidos não nos agradarem muito não significa que preferimos a sua supressão. A dessacralização da politica não significa que tudo nos seja indiferente. O que acontece é que sentimos por ela um afeto desprovido de paixão e de entusiasmo. Não é verdade que as pessoas tenham deixado de se interessar pela política; vivemos numa sociedade em que se alastrou o sentimento de competência em relação á politica; o nível de educação aumentou e todos nos sentimos capazes de emitir juízos sobre os assuntos públicos, de maneira que já toleramos menos que nos tirem essa possibilidade. E um dos modos em que a sociedade opina sobre política funda-se precisamente na intensidade da sua participação ou interesse.

Ao interessar-se mais ou menos pela política os cidadãos emitem sinais que devem ser interpretados politicamente. O desinteresse é também uma forma respeitável de opinar ou de decidir, e não, necessariamente uma falta de compromisso político.

Tudo se complica quando se aproxima a época alta de eleições como agora, O cidadão fica exausto no esforço de perceber se quando o político diz amarelo pensa vermelho; se fala em roxo, tem na mente verde retinto: se exibe branco, esconde negrumes envergonhados.

Sempre assim foi, dir-se-á. Só a mesa de bilhar onde jogam, é o nosso exíguo chão, e a tocada de carambola é sobre as nossas cabeças. Nota-se o brilhozinho nos olhos bem falantes, o divertimento do bem humilhar, a função perfeita de oposição ao governo, a disponibilidade de servir a pátria ou como ministro que desce a autarca ou membro de junta de freguesia. É esta a forma de alguns políticos, tão honesta como a dos atores. Só não nos divertem. Divertem-se connosco. E o que está em causa é o pão, a cultura a cidade, a região, o futuro, o direito de respirar e a vontade de pisar o chão que não proíbe o voo e o sonho.

As catástrofes que nestes dias têm assolado várias zonas do planeta, reduzindo populações inteiras ao limite de sobrevivência, dão a dimensão do amontoado de inutilidades em que se desgasta grande parte da nossa orquestra politica e social. De facto, a experiência do despovoamento, de ficar perante o quase nada, leva-nos à desvalorização de muitos super fluxos políticos que agora são prodigamente prometidos por outras palavras: Vaidades, tudo se esvai em dois tempos, ficando apenas o essencial. É talvez esse um dos pecados do homem moderno: Perdeu-se o acessório sem notar, e perdeu-se o essencial sem uma lágrima.

E ao que parece esta é a forma menos má de fazer política...

Por isso o combate contra a desordem emocional populista não passa tanto pelo apelo aos valores intangíveis mas sobretudo na mobilização de recursos emocionais, desde o medo até á esperança política é uma forma de canalizar as emoções sociais, de maneira que se tornem construtivas e não destrutivas. O populismo é precisamente uma reação á falta de política, que no seu formato atual não permite uma articulação política das paixões. O êxito do populismo explica-se porque a politica não consegue traduzir institucionalmente uma política de sentimentos amplamente disseminados em certos sectores da população, que já não confia em quem promete aquilo que não pode proporcionar.

Num momento destes, mesmo extraindo as lições que a realidade oferece, importa não perder a serenidade. E sobretudo, acreditar que não se inicia nenhuma poupança mandando como diz a história, simplesmente apagar a luz no fundo do túnel.