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Crónicas

O silêncio que consente

A vergonha prospera no segredo. A injustiça também. O que não se diz, perpetua-se. O que se tolera, instala-se

“Ela fez-lhe uma pergunta banal. Ele atravessou-a com um olhar fulminante. A rapariga pôs logo os olhos no chão. De certeza que já está habituada. Coitadinha, partiu-me o coração.”

O que fizeste? Perguntei à minha amiga.

“Nada. Não consegui. Ía fazer o quê? Eu estava quase a chorar. Ainda por cima, o tipo é conhecido. Não era comigo, ele não lhe bateu, aliás, ele nem abriu a boca...”

Nem sempre a violação dos direitos humanos acontece em cenas que abrem noticiários e fazem manchete. Muitas vezes, ela instala-se nas rotinas banais, nos gestos que parecem inofensivos, nas omissões quotidianas.

É quando alguém é tratado com desrespeito no serviço público e todos à volta fingem não ver.

É quando uma criança com necessidades especiais é deixada de fora de uma atividade escolar e ninguém questiona.

É quando uma mulher é interrompida numa reunião e se normaliza que “é assim mesmo”.

É quando alguém que nos chega de outras paragens e escuta “volta para a tua terra”.

É quando o pai, o irmão, o namorado/ marido/ companheiro abre os olhos e acabou nesse instante o diálogo.

O silêncio não é neutro.

O silêncio é cúmplice.

O silêncio consente.

E é precisamente aqui que se manifesta a linha ténue entre viver em comunidade ou compactuar com uma cultura de exclusão e violência.

Calamo-nos porque o cérebro procura segurança social. Temos medo da vulnerabilidade, porque o corpo reage com bloqueio, porque a cultura legitima o silêncio e porque acreditamos que a nossa voz não terá impacto.

Sigo há anos o trabalho da investigadora Brené Brown, que nos revela que a vergonha é uma emoção profundamente social.

Entrevisto demasiadas vítimas da vergonha, vítimas do silêncio cúmplie, em tantos contextos. Vítimas que geram outras por não conseguirem sequer identificar e reconhecer que o são. A ignorância é aliada da violência. E tantas vezes, quem tem poder de intervir, escolhe ignorar, por conveniência pessoal.

Quando assistimos a uma situação de injustiça, o nosso instinto pode ser falar. Mas, imediatamente, ativa-se o medo da rejeição:

“E se acharem que estou a exagerar?

E se for ridicularizado?”

Este medo está enraizado no funcionamento do cérebro social: a pertença é essencial para a sobrevivência humana. Calar-se pode parecer, no imediato, uma forma de preservar a pertença ao grupo.

Resultado: preferimos o desconforto interno (ficar em silêncio) ao risco externo (ser excluído ou julgado).

A neurociência já revelou que situações de ameaça social (como intervir num caso de violência doméstica ou assédio) ativam a amígdala, responsável pela resposta de medo. O corpo pode entrar em freeze(imobilização), tão natural como lutar ou fugir.

Esse bloqueio fisiológico é um dos motivos pelos quais muitas pessoas ficam caladas: não é apenas escolha racional, é resposta automática de autoproteção.

Depois, racionalizamos: “não é da minha conta”, “ela deve saber o que faz”, para justificar o silêncio.

Denunciar uma injustiça implica tornar-se vulnerável: expor emoções, enfrentar o conflito, admitir que se sente medo ou indignação. Sei, por experiência pessoal e profissional que é desafiante.

O silêncio funciona como defesa: é mais “seguro” não mostrar vulnerabilidade, mesmo que isso signifique ser cúmplice. E nem temos consciência.

Falar exige coragem. E a coragem de quebrar o silêncio nasce justamente da aceitação da vulnerabilidade.

Quando nos silenciamos perante a exclusão, estamos a ensinar às nossas crianças que há pessoas de segunda categoria.

Quando aceitamos piadas discriminatórias como “só humor”, estamos a legitimar a desumanização.

Quando normalizamos jornadas de trabalho que esgotam corpos e mentes, estamos a fechar os olhos a uma violação de dignidade básica (certo, mães?).

É verdade que não podemos corrigir tudo. Mas podemos sempre escolher não compactuar. Uma pergunta feita no momento certo, um “isto não está bem”, um gesto de apoio a quem é invisibilizado, a quem é silenciado.

Pequenas rupturas no silêncio podem abrir espaço para a mudança cultural.

Brené Brown alerta para a cultura do não-dito: quando as coisas não são nomeadas, tornam-se “normais”.

Se numa família, escola ou local de trabalho há um padrão de silêncio, a omissão passa a ser a regra. O grupo cria uma narrativa de conformidade: quem fala é visto como desestabilizador. O silêncio, neste caso, não é só pessoal, é cultural, e é isso que perpetua a cumplicidade.

A ilusão de impotência sustenta e consente a violência.

É urgente estarmos despertos para o mundo, recusarmos a anestesia do “não é comigo”. Percebermos que a nossa escolha de calar ou de falar transforma o tecido social.

A coragem, como lembra Brené Brown, não é ausência de medo, é a decisão de aparecer assim mesmo. Nasce da consciência de que a vulnerabilidade é força, não fraqueza. É um treino. Cada vez que rompemos o silêncio, diminuímos o poder da vergonha e da cumplicidade.

No dia a dia, essa coragem manifesta-se em atos simples: dar voz a quem não sabe que a tem, ou a quem foi silenciado, dizer não quando todos aplaudem, interromper padrões que se escondem na normalidade.

Porque os direitos humanos não se defendem apenas em tribunais ou em grandes assembleias.

Defendem-se em casa.

Defendem-se na rua.

Defendem-se todos

os dias, nas pequenas escolhas que fazemos diante da injustiça.

E talvez essa seja a forma mais poderosa de presença, ser cúmplice, sim: da dignidade e da justiça. Cúmplice da humanidade que ainda podemos construir.