O Amanuense
1. O Amanuense
Jorge Carvalho, dez anos sentado na Educação, dez anos de carimbos, dez anos de papelada acumulada como se governar fosse rubricar folhas com o nome dos outros, e os corredores cheios de pastas cinzentas, e os discursos iguais às instruções de um aspirador, estabilidade confiança qualidade, sempre as mesmas três palavras gastas, e por baixo delas nada, um silêncio administrativo, um vazio tão perfeito que parece de propósito, um amanuense que atravessa a política como um funcionário atravessa a repartição, com o passo medido, a pasta debaixo do braço, e a tranquilidade de quem nunca se comprometeu com nada.
O sistema agradeceu, claro, Miguel Albuquerque precisava de alguém que não fizesse sombra, que lhe fosse fiel, que não pedisse palco, que não tivesse a tentação de pensar muito. E Jorge Carvalho, perfeito na sua neutralidade, encaixou como uma gaveta que nunca range, obediente até à caricatura, sobrevivendo não pelo que fez, mas pelo que não fez, não pelas ideias que trouxe, mas pela ausência absoluta delas. Os professores lembram-se dele como quem se lembra de uma visita a uma repartição: atendeu, foi educado, despachou. Os sindicatos dizem cordialidade como quem diz não atrapalhou.
E enquanto isso a Educação da Madeira ficou suspensa no mesmo ponto, os avanços lentos, os problemas escondidos, os relatórios sempre positivos, e Jorge Carvalho a sorrir na fotografia, discreto, anódino, invisível, como se o cargo fosse maior do que ele e ele se limitasse a caber dentro dele, pequeno, acomodado, neutro. Não deixou marca, não deixou uma ideia, não deixou sequer uma frase que valha a pena citar. Ficou só o registo burocrático: esteve lá.
Agora, ao lançar-se para o Funchal, leva consigo esse vazio, esse programa de silêncio, essa promessa implícita de que nada mudará, de que o expediente continuará a correr como água tépida pelas torneiras. A experiência que oferece é a de uma vida a não incomodar, a não inventar, a não sonhar. O destino do amanuense é esse: sobreviver enquanto o sistema dele precisar, manter-se à tona a boiar, estender a mão aos poderosos e fazer aquilo que melhor faz: esperar.
No fundo, Jorge Carvalho não é um nome, é um sintoma: a doença de uma autonomia transformada em secretaria, de uma política confundida com burocracia, de um futuro que nunca chega porque está sempre a ser arquivado em dossiers numerados. E é essa a sua herança: não a transformação, não a visão, não o rasgo, mas a mediocridade útil, a cinzenta utilidade de quem nunca se atreveu a ser mais do que uma assinatura no fim da página.
Se Jorge Carvalho for presidente da Câmara do Funchal, o que aí vem não é governo, é expediente, a cidade inteira transformada em cartório, o Atlântico a bater nas muralhas como quem carimba papéis com tinta azul, os navios de cruzeiro reduzidos a pastas grossas com lombadas tortas, as ruas antigas cheias de selos de borracha, as crianças a brincar com carimbos em vez de brinquedos, a Sé do Funchal com um balcão de atendimento e senhas numeradas a piscar num ecrã: Cidadão 237, favor dirigir-se à Capela Mor, e os turistas a tirar fotografias às estantes de madeira como se fossem obras de arte, sem perceberem que a arte já se perdeu debaixo do pó dos dossiers.
As avenidas não seriam projectadas, mas registadas, as praças não seriam sonhadas, mas rubricadas, as habitações sociais ficariam em envelopes pardos com a inscrição “pendente”, o trânsito numa gaveta por abrir, o lixo urbano em cima da mesa, mas não na rua: em cima da mesa como processo administrativo. O presidente, com a calma com que um funcionário responde “aguarde um momento”, faria discursos iguais a manuais de instruções, palavras gastas como teclas antigas: estabilidade, qualidade, confiança, como se uma cidade fosse um electrodoméstico em garantia e não um corpo vivo que exige cuidado, paixão, invenção.
E quando os jornalistas perguntassem pelos problemas reais, a falta de habitação, o turismo devorador, a mobilidade impossível, a resposta seria sempre a mesma, a resposta neutra que atravessou dez anos de secretaria: “estamos a trabalhar, temos um plano, está a ser acompanhado”. Como se a repetição de frases fosse acto político, como se governar fosse redigir actas, como se a imaginação fosse um risco demasiado grande. O Funchal encolheria à medida do carimbo, uma cidade pequena, tão pequena, comprimida dentro do papel timbrado.
As ruas, se tivessem voz, queixavam-se: “tratam-nos como anexos, ninguém nos pisa com amor, apenas com sapatos de verniz de funcionário”. Os bairros, se falassem, gritariam: “somos processos antigos, esquecidos em cima da secretária, já amarelos do sol, já gastos de tanto esperar”. E o mar, cansado de bater, haveria de rir-se do expediente, porque o mar não espera despacho, o mar não aceita rubricar-se.
É assim que a cidade ficaria: suspensa, à espera de decisões que nunca chegam, embalada na neutralidade, a mediocridade útil convertida em programa de governo municipal. O que se acrescentaria ao Funchal não seria futuro, mas adiamento; não seria rasgo, mas silêncio; não seria vida, mas protocolo. Uma cidade que se governa como repartição morre devagar, morre de aborrecimento, morre arquivada.
No entanto, alguns, talvez muitos, aplaudiriam: a tranquilidade do funcionário que não levanta a voz, que não arrisca, que não ofende. O consolo do neutro, do cinzento, do nada. Mas esse nada pesa, infiltra-se como humidade nas paredes, corrói por dentro, devora sem barulho. A indiferença não constrói, a indiferença consome. E é a indiferença que Jorge Carvalho traria: um presidente educado, cordial, simpático, mas vazio, tão vazio que até o eco da cidade se perderia nos corredores da Câmara.
O que espanta, mais do que tudo, é que Jorge Carvalho não arrisca, nunca arriscou, é candidato ao Funchal há meses e não lhe saiu da boca uma ideia para a cidade, nada, nem um relâmpago breve, nem uma frase hesitante que pudesse ferir ou consolar, candidato mudo, candidato que atravessa a chuva como quem atravessa um corredor de hospital, devagar, de olhos baixos, tentando não molhar o fato, tentando não incomodar, e os dias decorrem, e as semanas passam, e o calendário avança, e em vez de se ouvir o rumor de um projecto só se ouve o silêncio, o silêncio a engrossar, o silêncio a tornar-se programa, o silêncio a encher os jornais com nada, e ele, Jorge Carvalho, imóvel no meio disso tudo, como se a presidência fosse uma porta que se abre apenas por esperar tempo suficiente diante dela.
2. Quando a Mentira Ganha Palco, a Verdade Perde Voz.
Uma imprensa que se diz neutra e imparcial, como se a neutralidade e a imparcialidade fossem medalhas coladas no peito com cuspo, tem o dever de separar o trigo do joio, escolher as palavras com cheiro a terra e deixar no lixo o rumor, a mentira, a invenção rasteira. Não se trata de um capricho moral, mas de sobrevivência: quem mente devia ser expulso da sala, como se expulsa um bêbedo incómodo da tasca. O compromisso do jornalismo não é com os lados, nem com a encenação de dar a cada um o mesmo tempo de palco, mas com a verdade possível, aquela que se arranca à força ao caos dos dias. E por isso não há igualdade possível: o tempo de antena não pode ser moeda distribuída como quem atira tremoços à multidão, porque a verdade não se pesa em minutos de televisão.
O que espanta, o que dói, o que chega a dar vergonha, é ver como uma parte da imprensa se presta a esta liturgia de dar espaço aos impostores, como se a mentira fosse um convidado respeitável, como se o absurdo merecesse poltrona ao lado do real. Multiplicam-se as entrevistas, as colunas, os debates em que se põe frente a frente quem prova e quem inventa, quem mostra documentos e quem sussurra boatos, tudo em nome de um equilíbrio de vitrina. Chamam-lhe pluralismo, mas não passa de desistência: um atalho cómodo, uma preguiça travestida de virtude. Tratar a verdade como se fosse uma opinião entre muitas é abdicar dela, e essa abdicação, repetida até à náusea, corrói o espaço público como uma infiltração.
A democracia pede liberdade, não dá licença à mentira para ocupar cadeiras cativas. O pluralismo não é igualar o médico com o charlatão, nem o historiador com o demagogo de feira. E, no entanto, é esse o teatro que a imprensa repete: palco aberto ao disparate, santuário para quem grita mais alto, ruído amplificado em nome de um equilíbrio que nunca existiu. O resultado é conhecido: a confiança desfeita, o leitor desconfiado, a sensação de que nada é sólido, de que tudo é negociável.
Uma imprensa que se rende a este relativismo já não informa, limita-se a ser caixa de ressonância de vozes ocas, eco de uma multidão em delírio, barulho sem critério, só barulho.