A Biblioteca do Funchal e a Paragem de Camionetas
Em 1838, por decisão camarária, foi criada a Biblioteca Municipal do Funchal. A cidade optou por guardar aquilo que nos faz comunidade, detentora de cultura e de civilização. A importância da Biblioteca Municipal transcende a ideia de espaço físico. Ela é o repositório da identidade madeirense e da herança universal do pensamento.
Cada volume guardado nas suas estantes é uma peça única da genialidade intelectual. São testemunhos do passado, reflexos do espírito humano, observadores silenciosos do que fomos e do que ainda poderemos ser. As bibliotecas são as guardiãs da memória coletiva – nelas se conserva o fio da história, e nelas se pode (re)construir o futuro. Apagar, esvaziar ou diminuir o papel da Biblioteca Municipal do Funchal seria um atentado à memória e à continuidade cultural não só da Cidade como daquilo que somos.
Não tenho dúvidas do esforço diário de quem lá trabalha, da grande vontade em fazer da Biblioteca Municipal do Funchal um lugar aprazível. Já teve outras moradas, nomeadamente uma sala dos Paços do Concelho e o belíssimo Palácio de São Pedro. Também contou com parcerias fundamentais, como a da Fundação Calouste Gulbenkian. Muitos de nós tiveram acesso aos primeiros livros pelas Bibliotecas Itinerantes. Era, de facto, um momento alto e expectante das nossas vidas. Lembro-me dos livros Penguin e das histórias fabulosas da Formiguinha.
Sempre que passo junto ao Edifício 2000, por todos nós conhecido, penso se não haveria a possibilidade de termos um espaço mais generoso para a Biblioteca Municipal do Funchal. A nossa biblioteca quase parece estar enfiada numa paragem de camioneta. Como se Homero, Camões, Pessoa, Sophia e todos os clássicos coubessem nos intervalos entre um autocarro e outro. Como se Dante pudesse ser lido com o cheiro a gasóleo e buzinas em fundo. É uma visão que me entristece. O Inferno de Dante parece estar numa paragem improvisada no Funchal.
Não se trata de uma questão logística. É desapontante que quando se fala no retorno aos livros, à caneta e ao papel, e se mantenha a cultura à condição de bagagem perdida. É esquecer que os livros e a arte não são simples objetos utilitários, mas memórias vivas, pedaços da alma coletiva de um povo. Manter a Biblioteca Municipal do Funchal numa quase paragem de camioneta é como servir vinho Madeira em copos de plástico, guardar a Mona Lisa numa arrecadação de condomínio ou apresentar uma sinfonia de Beethoven em versão karaoke numa excursão de autocarro. É o triunfo do improviso sobre a dignidade.
Os funchalenses merecem salas de leitura com janelas abertas para o futuro. Porque não encontramos juntos um espaço autónomo, verde, com esplanadas e ar livre? Um sítio onde o tempo seja de cada um e que à saída se carreguem livros para casa, e que em vez do escape da camioneta se possa ver o sol e perceber que “há tanto céu sobre nós”. As bibliotecas não são apenas depósitos de livros: São baús de memória e de cultura, e guardiães do conhecimento.
Nas eleições municipais de outubro de 2025, o meu voto será de quem devolver à Biblioteca Municipal do Funchal a dignidade que os livros merecem. Uma cidade que desconsidera a casa dos seus livros, desrespeita-se a si própria e à sua memória. Sei que todos temos prioridades. Esta é a minha. Sabem onde ficaria magnífica a Biblioteca do Funchal? No Bazar do Povo.