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Crónicas

O Evangelho Segundo a Seita

1. O Evangelho Segundo a Seita
[quando a política deixa de ser política e se transforma numa religião barata]

Uma das coisas que mais me incomodam na política, e digo incomodam como quem fala de um zumbido que não pára nunca, de um rumor insistente que se cola às paredes da cabeça, é esta tendência de certas lideranças para transformar o que devia ser espaço público, lugar de confronto e de ideias, numa seita. A palavra é essa, seita, e não há maneira de a suavizar, com todas as suas pequenas doenças que se infiltram devagar e um dia já não se distinguem da respiração dos que lá estão.

Uma seita começa sempre do mesmo modo, com um chefe, um homem ou uma mulher convencido de que tem qualquer coisa de especial, uma missão secreta, uma iluminação privada, e que olha para os outros como quem olha para uma multidão de cegos que não entendem nada. Está em todo o lado sempre presente para todo o serviço. Ao lado desse chefe, o núcleo duro, repetindo como papagaios as mesmas cinco frases, mastigadas até à exaustão, frases que deixam de significar alguma coisa mas que servem, como servem as orações, não para explicar mas para tranquilizar. Depois vêm os rituais, sempre iguais, as reuniões com cheiro a incenso de sacristia, onde nada é discutido porque já estava decidido antes, e a fronteira absoluta entre “nós” e “eles”, nós que somos os escolhidos, eles que são a escória, nós que sabemos, eles que se percam.

E é nesse ambiente que cresce a convicção delirante de que a seita detém a verdade. Que não precisa de diálogo porque a verdade não se discute, revela-se. Que não precisa de compromissos porque comprometer-se é trair o dogma. Que não precisa de responsabilidade porque a salvação justifica tudo. E tudo isto, esta mecânica sombria, esmaga o que a política deveria ser: uma arte imperfeita, feita de avanços e recuos, de princípios que só valem se conseguirem adaptar-se ao mundo real, de soluções concretas para problemas concretos.

Porque a política, ao contrário da seita, não é liturgia. Não é missa de domingo nem acampamento de escuteiros com bandeira e lenço ao pescoço. A política é suja, difícil, contraditória. É feita de negociações que custam, de compromissos que doem, de escolhas que raramente agradam a todos. Mas a seita não tolera essa sujidade, recusa a contradição. Vive de dogmas prontos-a-usar, aplicáveis a qualquer situação, como se o mundo fosse um tabuleiro onde tudo encaixa sem resistência.

Na seita reúnem-se aqueles que nunca foram chamados para os banquetes da alta política dos interesses, das negociatas, dos conluios. É que ficam muito chateados com isso. Os que ficaram sempre à porta a ver passar os pratos fumegantes, os copos cheios, os brindes cúmplices. E aí, na sua congregação de excluídos, põem-se em bicos de pés à espera do seu momento, do seu instante de glória. Mas sempre convencidos de que não será a força do argumento, nem o mérito, nem a capacidade que lhes abrirá caminho, e sim essa sua postura salvifica, essa convicção patética de que são eles, e só eles, que hão-de trazer os ímpios à razão, os cegos à luz, os incrédulos à fé.

E dentro da seita o jogo é previsível, sempre igual: quando um membro destes, quase que angelical, não consegue impor o seu ponto de vista, sai em fúria, convencido de que foi mártir, vítima de uma conspiração. Quando consegue, exige o aplauso, a unidade, a consagração pública, a prova de que o seu génio foi reconhecido. Não há coerência, não há critério político. Só há conveniência, só há esta dança tribal que serve para reforçar a ilusão de unidade.

O pior, o que corrói devagar, é que as seitas nunca cumprem o que prometem. As palavras que dizem não são ditas ao país, mas ao grupo. O eleitorado, o tal de “nosso eleitorado”, seja lá isso o que for, é apenas cenário, pano de fundo, plateia decorativa. A verdadeira audiência está dentro da sala fechada, são os companheiros que se veneram uns aos outros. E como não têm admiração lá fora, inventam-na cá dentro: todos se aplaudem, todos se idolatram, todos fingem acreditar no mérito alheio para não reconhecer a própria mediocridade. É um círculo vicioso de vaidade e auto-ilusão, um espelho em que cada um se vê mais alto, mais puro, mais necessário do que é.

E então a política transforma-se em fé. Em vez de liderança, temos culto. Em vez de responsabilidade, encenação. Em vez de soluções, dogmas. Tudo reduzido a uma missa mal ensaiada, com coro desafinado, mas onde ninguém se atreve a dizer que a música soa mal. Porque na seita não há crítica, só idolatria. Não há dúvida, só convicção. Não há liberdade, só disciplina do “somos todos fantásticos” e damo-nos muito bem.

E é isto que me repugna: ver homens e mulheres que se dizem políticos, que deveriam estar ao serviço de todos, reduzir-se a servidores de um grupo, de um pseudo-chefe, de uma ideia feita. A verem o mundo não como é, mas como convém que seja. A recusarem a complexidade da vida porque a vida não cabe dentro dos seus slogans. E a exigirem ainda, como se fosse pouco, a gratidão de quem fingem servir.

Sempre que vejo esta lógica instalar-se, reconheço-a de imediato. Reconheço o tom de voz repetido, a arrogância de quem se julga iluminado, o vazio dos discursos que parecem profundos mas são apenas palavras gastas. Reconheço a impostura. E sei que não é serviço à Madeira. É serviço ao ego. É serviço à seita. E já tivemos seitas a mais travestidas de partidos, todas a prometer redenção, todas a acabar no mesmo caixote de lixo da História, onde pertencem.

2. O Teatro dos Bonecos Sem Voz
[onde os titereiros escondem a cara e as marionetas fingem que têm alma]

Andam por aí umas figuras sem sangue, sem ossos, sem carne própria, convencidas de que são políticos porque lhes puseram um blaser barato às costas e lhes disseram que estavam prontos para o palco, e eles acreditaram, coitados, acreditaram como quem acredita na lotaria, sem desconfiar que o bilhete está viciado, que o número nunca sai, que a sorte não é para eles. Bonecos de cordel, bonecos de corda, bonecos de feira, abanam a cabeça, sorriem, repetem as mesmas palavras que o titereiro lhes sopra ao ouvido, palavras velhas, gastas, inúteis, que já vinham escritas antes de abrirem a boca. Não têm voz, nunca tiveram voz, são como ventríloquos invertidos: falam, mas a voz não é deles, e quando o titereiro se cansa, quando o titereiro se distrai, quando o titereiro adoece, morre ou simplesmente se farta, ficam parados, braços pendentes, olhos vidrados, como bonecas de pano deixadas ao sol, apodrecendo lentamente, esquecidas no alpendre de uma casa abandonada.

O titereiro, esse, que se julga grande, que se julga maestro, que se julga profeta, não passa de um covarde envernizado, um presunçoso que se encolhe no escuro para não ser visto, um vaidoso de mercearia que tem medo da claridade, que nunca dá a cara, nunca assume, nunca arrisca, e ainda assim exige reverência, exige palmas, exige o silêncio respeitoso de quem não percebe que está a aplaudir o vazio. Alimenta-se de frases feitas, slogans reciclados, máximas compradas em alfarrabistas de esquina, e recita-as como quem recita missas num latim que já ninguém entende, acreditando, pobre diabo, que está a iluminar quem o ouve, quando apenas repete ruído, um ruído que serve para encher a cabeça dos bonecos que manipula. Não representa nada nem ninguém, só a si próprio, e mesmo isso mal, porque o que é um titereiro sem fantoches? O que é um deus sem crentes? O que é um pregador sem púlpito? Nada. Pó. Fumaça.

E sobra este espectáculo miserável: bonecos de corda sem corda, titereiros sem palco, a encenação de uma importância que nunca existiu, o teatro de uma política que não chega sequer a ser farsa porque a farsa exige talento, ao menos talento para enganar, e aqui não há talento nenhum, só repetição, só vazio, só o encolher dos ombros perante a mediocridade. A política, que sobrevive a tudo, continua indiferente, desliza como água de levada, ignora-os, abandona-os no passeio como quem abandona um saco de lixo que já nem cheira, porque até o lixo fede, até o lixo incomoda, mas eles nem isso: são o silêncio da irrelevância, o nada vestido de gente.

3. Estava a reescrever este artigo para incluir um ponto sobre a barbárie do sucedido em Machico. Entretanto, na minha opinião, o que o António Santa Clara escreveu nestas páginas no passado sábado deixou-me sem ter o que dizer. Aplaudo-o de pé, com a certeza de que nunca conseguiria escrever melhor.