Violência, impotência e um caminho por fazer
A madrugada de 24 de Agosto em Machico ficará marcada como um retrato cruel do que de pior existe no ser humano e, simultaneamente, da fragilidade gritante do sistema que deveria proteger as vítimas. Um bombeiro, alguém que a sociedade associa à vida e à protecção, transformou-se em agressor da própria mulher e do filho de 9 anos, perante câmaras de videovigilância que tudo registaram. As imagens frias e cheias de dor correram o país em segundos, provocando indignação, revolta e, inevitavelmente, uma pergunta angustiante: quantas agressões semelhantes continuam a acontecer atrás de portas fechadas, longe das câmaras e da exposição pública? Muitos, segundo as estatísticas.
A violência doméstica é um flagelo persistente. Ano após ano, governos anunciam medidas, criam linhas verdes, estabelecem protocolos e multiplicam campanhas. No entanto, as vítimas continuam a cair, uma após outra, esmagadas pelo silêncio, pela dependência económica, pelo medo e, demasiadas vezes, pela ineficácia das instituições que deveriam intervir. O caso de Machico expôs esta realidade com brutalidade: a barbárie foi pública, as provas irrefutáveis, e ainda assim passaram mais de 62 horas entre a agressão e a detenção.
Dizem que a lei exige um mandado judicial quando não há flagrante delito. Não é assim! Não se compreende como só na terça-feira à tarde – após ondas de indignação generalizadas, pressão da opinião pública e manchetes nos jornais – a Justiça decidiu agir, mesmo com o relatório da PSP pronto desde as 9h de segunda-feira. A questão é inevitável: se a denúncia tivesse ficado circunscrita às autoridades, sem o peso da exposição mediática, teria o agressor sido detido naquele dia?
E nesse intervalo, se tivesse havido outra tragédia? Quantas vezes já ouvimos relatos de vítimas que imploram protecção e acabam abandonadas à sua sorte? Quantas histórias repetidas de agressores reincidentes que voltam para casa, que ameaçam, que cumprem as suas promessas de violência? A cada novo caso, a sensação de impunidade alastra e a confiança na protecção do Estado desmorona.
Este episódio expõe não apenas a lentidão e passividade da Justiça, mas também as debilidades estruturais das nossas forças de segurança, particularmente na Madeira. A falta de meios da PSP é conhecida e foi noticiada pelo DIÁRIO recentemente: investigações atrasadas, turnos reduzidos, concelhos inteiros dependentes de meia dúzia de agentes. Na madrugada de 24 de Agosto, quantos polícias estavam de serviço em Machico? Quantos recursos havia disponíveis para responder a uma emergência? A resposta, sabemos, é preocupante.
Perante isto, a pergunta impõe-se: está a PSP em condições de garantir segurança efectiva à população? Este caso mostra-nos que não. Mostra que a violência doméstica, que já é um drama social, pode tornar-se ainda mais grave quando se alia à inoperância de quem devia proteger os vulneráveis.
Não está em causa, neste momento, se o agressor será ou não condenado, caberá ao Tribunal avaliar as provas. O que está em causa é a percepção clara de uma Justiça lenta e de uma autoridade incapaz de agir com a prontidão que a gravidade do crime exige. O Estado não pode continuar a assobiar para o lado, como se a violência doméstica fosse um problema menor, um assunto privado ou uma estatística inevitável. Na cabeça ecoam os gritos do menino de 9 anos a implorar para que o pai parasse de espancar a mãe.
A segurança pública é um dos pilares da democracia. A protecção das vítimas é um dever inalienável do Estado. Quando falha, não é apenas a vida de quem sofre agressões que está em risco; é a confiança de todos nós no sistema de Justiça, é a solidez do contrato social que sustenta a comunidade.
Machico não pode ser apenas mais um caso a engrossar as estatísticas. Deve ser um ponto de viragem. Porque cada silêncio, cada demora, cada falha pode custar vidas. Já custa, todos os dias.