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Crónicas

Luz anti ignorância

A intolerância mata. Cada gesto de respeito, cada pergunta curiosa, cada conversa sobre diversidade é um passo para o reconhecimento, a inclusão e um mundo mais justo

“O pai pediu-lhe que fosse obediente, porque Bolama não integrava o reino dos Bijagós (…)”. Li esta frase há dias, no último livro que ofereci às minhas filhas ‘A Princesa dos Bijagós’. Conta a infância daquela que viria a ser a última Rainha dos Bijagós, na Guiné-Bissau. Lemos juntas, com a serenidade de quem descobre raízes escondidas.

Essa história é também, de alguma forma, um pouco nossa (a razão, por agora, guardo para mim). Talvez por isso as palavras soassem tão próximas, como se falassem da família que escolhemos, das memórias que nos atravessam, mesmo quando julgamos que não nos pertencem.

No mesmo dia, 22 de agosto, assinalava-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas de Atos de Violência com Base em Religião ou Crença. A coincidência não me passou despercebida: ler sobre uma infância marcada pela tradição e, ao mesmo tempo, recordar tantas vidas destruídas pela intolerância. Como se a literatura e a vida dessem as mãos para nos (re)lembrar do que realmente importa: o respeito pela diferença, a liberdade de acreditar, ou de simplesmente existir.

Há datas que nos pedem silêncio. Outras, memória. Esta pede-nos também consciência, e talvez coragem, para não repetirmos a indiferença que tantas vezes abre caminho à violência.

Antes de prosseguir, e para ter a certeza que estamos todos alinhados acerca do que é uma crença, quero partilhar que na perspetiva da neurolinguística, a crença religiosa nasce como uma perceção íntima, pesssoal, sobre o divino, o propósito da vida ou os códigos que regem a nossa moral. É como um filtro invisível: molda a forma como pensamos, sentimos e agimos no dia a dia. E é também aquilo que dá sentido, segurança e estrutura à experiência humana, sobretudo quando atravessamos momentos de dor, incerteza ou perda.

As crenças têm uma força imensa sobre a mente e o comportamento. São motivadoras, despertam disciplina, ética, compaixão e altruísmo. Alimentam a resiliência, porque lembram que somos capazes de atravessar o medo e a adversidade. E sustentam a identidade, já que organizam prioridades, hábitos e escolhas, ajudando-nos a contar uma história coerente sobre quem somos, o que valorizamos e aquilo pelo que tem verdadeiro significado para nós e para a nossa vida.

No plano coletivo, a crença religiosa (saudável) não se limita ao íntimo de cada um: ela cria cultura, dá origem a rituais e constrói comunidades. Faz nascer valores partilhados, laços de pertença e coesão social.

E, nesse movimento, o poder coletivo da fé amplia o impacto individual, gera identidade, reforça a segurança e desperta uma motivação que não é só pessoal, mas profundamente humana e partilhada, geradora de bem-estar comum.

Agora, vou entrar pela Europa, porque é aqui que estou a viver, na Madeira, embora esta se situe na placa africana, é Europa (a beleza deste mundo!).

A Europa não é uma só. É múltipla. E é por isso que é tão bela, tão rica, tão mágica.

Desde a Antiguidade, povos atravessaram fronteiras, trouxeram idiomas, tradições, formas de contemplar, rezar e de cozinhar. No tempo dos Descobrimentos, chegaram especiarias, tecidos, ideias, encontros, pessoas. Tudo isso moldou quem somos.

Nada aqui é puro. Nunca E acredito que, garantidamente, jamais será.

A Europa não tem um sangue único: é feita de muitos rios que se cruzaram e que ainda hoje correm juntos. E, no entanto, tendemos a esquecermo-nos disso. Esquecemo-nos quando vemos a diferença como ameaça. Quando a fé do outro se torna motivo de desconfiança. Quando a religião deixa de ser caminho e passa a ser arma.

É anti essa amnésia coletiva que esta data nos convoca: recordar aqueles que perderam a vida porque ousaram acreditar de forma diferente. Lembrava-nos tantas vezes, a querida Maya Angelou que o preconceito é um fardo que confunde o passado, ameaça o futuro e torna o presente inacessível.

Os espaços públicos europeus são pautados de beleza ímpar. Minaretes e mesquitas convivem com catedrais em cidades como Sarajevo, onde se ouve sino e a chamada à oração quase ao mesmo tempo. As sinagogas em Praga, Varsóvia ou Amesterdão lembram comunidades judaicas antigas e atuais. Os templos hindus em Londres, os templos budistas na Alemanha ou os centros sikhs em Itália são hoje parte do tecido urbano. Ou seja, basta abrir os olhos no dia a dia europeu: nos talhos, nos mercados, no calendário das festas locais, nos sons e cheiros que vêm das ruas.

A Madeira não ficou à margem desta diversidade. Embora Portugal seja um país de forte tradição católica, a ilha sempre acolheu diferentes crenças. O Protestantismo, por exemplo, está presente desde o século XIX, trazido sobretudo pela comunidade britânica ligada ao vinho Madeira, ao comércio e ao turismo. A Igreja Inglesa do Funchal, a Holy Trinity Church, continua, ainda hoje, a ser lugar de encontro e de culto.

Outras comunidades, mais pequenas mas igualmente vivas, também fazem parte do quotidiano insular: Testemunhas de Jeová, Adventistas e Evangélicos mantêm templos ativos no Funchal e noutras localidades. O Islão cresce com a chegada de comerciantes, estudantes e famílias de países africanos muçulmanos, enriquecendo a vida cultural e social da ilha. O Hinduísmo, iniciado por descendentes de famílias indianas, ganha novos praticantes, entre residentes que escolheram a Madeira para viver e madeirenses que se aproximaram dessa tradição.

Cada presença é uma maré que chega, alargando as margens da geografia humana e cultural da Madeira: sabores diferentes na mesa, novas formas de celebrar o tempo e a vida, outras formas de pensar, orar, ou de procurar silêncio. Longe de ser ameaça, esta pluralidade é uma riqueza. Mostra que a identidade madeirense, como a europeia, não se fecha: abre-se, mistura-se e cresce na diversidade.

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”
Martin Luther King Jr.

Na prática, no nosso dia a dia, o que podemos fazer para sermos agentes de integração e expansão, para crescermos juntos, levarmos e elevarmos a identidade madeirense ainda mais longe?

Podemos começar em casa, com as nossas crianças, porque as nossas escolas estão repletas de tesouros de outras etnias e crenças igualmente ricas. Como falamos das crenças que não são as nossas? Com naturalidade? Com curiosidade? Com julgamentos? Usamos termos como “nós” e “eles”, promovendo divisão? Ou partimos de um lugar comum de amor e fé, utilizando o plural “nós”, e a partir daí elaboramos o que é uma crença e que, na verdade, a intenção de todas as religiões e credos é a mesma?

Como descrevemos quem reza de forma diferente, quem tem outra cor de pele, quem fala com sotaque? As palavras que usamos são sementes: podem germinar em preconceito ou em respeito.

Será que reconhecemos todas as culturas que são “servidas” na nossa mesa todos os dias? O pão, o arroz, o café, as especiarias… são testemunho vivo desta mistura que nos enriquece. Poderíamos confecionar os pratos típicos locais sem esta interceção cultural? Falamos disso com os nossos filhos? Ajudamos a ver a riqueza que há no encontro e não apenas na semelhança?

E, sobretudo, estamos dispostos a escutar? A ouvir histórias que não são nossas, a acolher memórias que não coincidem com as nossas tradições?

Que sejamos todos como velas que brilham lado a lado, cada fé ilumina o mundo à sua maneira.

Este dia não é apenas sobre vítimas distantes. É sobre nós. Sobre o modo como escolhemos educar para o amor, para o respeito ou para a exclusão e o medo. Sobre o mundo que estamos a co-construir em casa, na escola, no recreio, nas conversas de família e de ‘café’.

Talvez o primeiro passo seja este: reconhecer que somos feitos de muitas origens. E que é exatamente aí que reside a nossa maior riqueza.