Campismo selvagem não é um problema, mas antes uma consequência
Nos últimos dias, a Madeira assistiu a mais uma explosão de indignação nas redes sociais, alimentada por imagens de turistas a montar acampamentos improvisados em locais públicos: tendas de tejadilho abertas em miradouros, roupa estendida, cadeiras e mesas montadas como se fossem extensões da bagageira.
É natural que estas imagens causem revolta. A sensação de que “fazem aqui o que não fazem nos países deles” incomoda — e com razão. A ocupação indevida do espaço público é uma falta de respeito. E sim, o chamado campismo selvagem deve ser combatido com firmeza. A tolerância zero anunciada pelas autoridades está justificada quando falamos de quem monta verdadeiros acampamentos fora das zonas legalmente permitidas.
Mas é aqui que a discussão precisa de clareza: há uma diferença muito grande entre campismo selvagem e pernoita discreta dentro de um veículo de campismo. Dormir no interior de uma campervan ou carrinha devidamente equipada, estacionada legalmente e sem sinais exteriores de acampamento, não é ilegal. Está dentro do previsto no Código da Estrada e não fere nenhuma norma de proteção ambiental — ao contrário do que muitos fazem parecer.
Apesar disso, muitos madeirenses começam agora a olhar com desconfiança para qualquer carro com uma cama lá dentro. Pior: há uma tendência perigosa para generalizar e lançar toda a culpa sobre o chamado “turismo de carrinha”, tratando-o como símbolo de um alegado turismo low-cost que pouco contribui para a economia local. Mas a realidade não podia estar mais longe disso.
Alugar um carro com tenda no tejadilho ou uma camper, por exemplo, pode custar bem mais do que muitas estadias em hotéis ou Airbnbs na ilha, mas o Zé povinho, que nunca usou uma plataforma de aluguer, que passa as férias ocasionais no Porto Santo em casa dum amigo e provavelmente só conhece Lisboa e as Canárias é perito a comentar a torno e a direito, em português assassinado (venham os comentários).Este não é turismo “de borla”. É uma forma diferente de viajar, mais livre, mais conectada com a natureza — e, quando feita com consciência, muito menos invasiva do que o turismo de massas que hoje ocupa (e desgasta) a Madeira.
Porque é preciso dizer com todas as letras: o verdadeiro impacto ambiental não está no turista que dorme dentro de uma carrinha no Seixal ou em Santana. Está no modelo turístico que todos parecem fingir que não existe:
• Está nas frotas gigantes de autocarros turísticos que entopem as estradas de acesso aos pontos mais sensíveis da ilha, criando filas, poluição e risco constante de acidentes.
• Está nos jipes turísticos que circulam em filas, a cair de podres, a “cagar” fumo nos túneis e nas nossas serras, carregados de turistas “como sardinhas em lata”, com promessas de darem a conhecer os cantos mais selvagens e desconhecidos da Madeira.
• Está nas dezenas de milhares de carros de rent-a-cars que circulam todos os dias sem qualquer limite ou critério, devagar, desorientados, pressionando vilas pequenas, zonas residenciais e parques de levadas que não foram pensados para tanto tráfego.
E está, acima de tudo, num modelo turístico baseado na quantidade e não na qualidade. Onde tudo se transforma em oportunidade de negócio imediato — do terreno rural convertido em alojamento local à frotas gigantes de carrinhas a circular em massa, exploradas por empresas que visam lucro rápido, sem compromisso com a sustentabilidade real.
Este é o modelo que representa uma ameaça séria à Laurissilva, ao nosso património natural, ao tecido social local e à qualidade de vida dos próprios madeirenses. Mas é um modelo que raramente é criticado, porque interessa a muita gente, que directa ou indirectamente tira proveito dele.
Já o turista que viaja numa carrinha — muitas vezes com consciência muito mais ecológica, orçamento responsável e respeito pelo lugar — torna-se o alvo fácil. Porquê? Porque é visível, está vulnerável, e porque é mais simples atacar quem parece “forasteiro” do que enfrentar o sistema que todos alimentam.
A solução não é expulsar quem dorme dentro de uma carrinha. A solução é criar espaços dedicados para pernoita, implementar sinalética clara, multar quem realmente monta acampamentos ilegais — e, sobretudo, encarar de frente o modelo turístico que temos vindo a construir.
É fácil culpar o elo mais fraco. Mais difícil é mudar aquilo que está enraizado. Mas se queremos proteger a Madeira, esse é o caminho que importa.
P. Abreu