Autonomia madeirense: sentimento de orfandade?
A interrogação pode parecer despropositada, mas é exactamente por isso que se impõe: dar alguma coisa por garantido poderá ser o primeiro passo para a perder. Daí a necessidade - que devia ser constante na vida política madeirense e entre os seus intervenientes directos - de questionar, tanto as conquistas alcançadas em prol do nosso Bem Comum, como ainda mais aquilo que as possa colocar em risco. Para que o sinal que irradiam não se extinga (mas também para que a luz não cegue), assim como para que aqueles que dela usufruem (e devem ser todos, porque a Autonomia não tem donos) e que vivem hoje (de certeza a maior parte) como se calhar os seus pais e avós nunca sonharam, as saibam merecer, preservar e, acima de tudo, afirmar e desenvolver.
Mas são múltiplos os sinais de que aquilo que aí vem (ou é verosímil que venha) não será agradável, afligindo diversas áreas, com implicações de carácter político, económico e financeiro, daí advindo consequências sociais. Poderão até, se não se houver o cuidado devido, colocar-se em causa valores e princípios até há pouco considerados irreversíveis.
Os sinais têm teor diverso. Vão desde as simples (mas serão inócuas?) desconsiderações de alguns dos mais altos representantes do Estado em relação à Região Autónoma; até à crescente (aparente?) incapacidade dos Órgãos de Governo Próprio e daqueles que são os mais lídimos representantes do povo madeirense, de se fazerem ouvir e agir com eficácia, nos diversos fóruns, nacionais e europeus, onde o futuro se constrói; passando por tentativas, mais ou menos declaradas, mas sempre sub-reptícias, dos poderes centrais, de procurar equiparar as Regiões Autónomas às putativas Regiões continentais ou, pior, aos poderes locais e municipais da República. E tudo, não poucas vezes, perante alguma passividade conivente (ou inconsciente?) de quem não era suposto tê-la. O Poder que não se afirma, perde-se.
Às portas de um novo acto eleitoral, é fundamental – acima de qualquer outra coisa – que todos os candidatos tenham a suprema consciência de que sem Autonomia Política… eles pura e simplesmente não existiriam. Por muito que me custe, é inacreditável verificar que, a caminho dos 50 anos da concretização de uma das mais legitimas e elevadas aspirações dos madeirenses, ainda há quem não o tenha percebido, persistindo inconsciente dos seus deveres e obrigações. Pior: os factos (e algumas palavras) mostram que há pelo menos um Partido político que até ao momento se recusa a sequer a aceitar, de todo, o devir da História. A ignorância será sempre uma ameaça à Democracia e, por isso, à Autonomia.
Chegar-se à eleição de deputados para uma Assembleia Legislativa da Madeira exigiu, ao longo dos últimos dois séculos, sangue, suor e lágrimas. E tal não se ficou a dever apenas, ao contrário do que por vezes se deduz, a meia dúzia de iluminados ou eleitos. Alcançou-se graças e à conta do sofrimento do Povo. Daquele que andava descalço ou passava a fome que obrigava à emigração; que percorria quilómetros a pé para ir buscar água ou chegar à escola; que há duas gerações vivia em furnas ou sem acesso ao saneamento básico. O respeito pela sua Memória devia até ser alvo de juramento, imposto a todos os deputados.
Habitação? Viação? Indústria? Transportes e Mobilidade? Salários? Condições e qualidade de vida? Na verdade, estas são questões constantes, que caracterizam a construção do contemporâneo madeirense, desde os alvores do século XIX. Com as matizes próprias de outros tempos, é certo, mas sempre recorrentes. O que hoje alguns ignoram é que em todos esses momentos se percebeu que pelo menos duas coisas seriam imprescindíveis para atenuar ou resolver tais anseios ou lacunas: viver em Liberdade e ter Autonomia Política, coadjuvada esta por uma dimensão financeira efectiva. Sem isto, que dá o «ambiente» e o «oxigénio», jamais aqueles objectivos serão atingidos.
Daí o espanto de, tirando breves excepções, a Autonomia e o seu aperfeiçoamento terem andado arredados dos debates e da campanha eleitoral. O que se pensa sobre: as relações com o Estado central e os seus representantes; as reformas dos sistemas político e eleitoral; a reforma da Lei das Finanças das Regiões Autónomas; a pertinência de um sistema fiscal próprio; o CINM (ou «Zona Franca); a gestão do espaço marítimo; a representação electiva específica e a defesa dos interesses da RAM e/ou das RUP nos órgãos da UE, a começar pelo seu Parlamento; as questões de Segurança e Defesa, a respeito das quais, não obstante, se devem considerar os interesses próprios do Arquipélago, numa conjuntura internacional em mudança? E por aí adiante.
É imperioso que a Autonomia e os autonomistas cresçam, porque o tempo dos carismas acabou. O que aí vem - que será do primado da Política - exigirá bom senso e um Governo competente, capaz de dialogar. De outra forma, temo que a Autonomia fique órfã e mirre. Estarão disso conscientes todos os intervenientes - inclusive os eleitores - embrulhados ou atulhados em políticas (e por alguns políticos) de «campanário»? Isso já é outra História.