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Crónicas

E como se faz para sobreviver?

O pior tinha ficado no hospital e nas tardes de quimioterapia, mas o espelho continuava a devolver-me a imagem de uma pessoa diferente da jovem a quem, um ano antes, haviam dito que era cancro. Faltava-lhe o cabelo liso e comprido, o optimismo e a esperança cega no futuro para ser eu, a rapariga que acreditou sempre que era possível passar por aquele calvário de tratamentos e exames. E parecia simples e fácil, era só seguir as recomendações, evitar o sol e os banhos de mar, o álcool e os cigarros, prescindir das férias e das viagens de avião. O que fiz sem me desviar, fazendo-me forte para enganar o medo.

Como podia ser a mesma se, para não preocupar a minha mãe, o meu pai e as tias, fui sozinha às consultas, aos exames e ouvi o diagnóstico sem um ombro para chorar. E só chorei depois, mais à frente, quando a quimioterapia começou a fazer estragos, a trazer enjoos e a levar-me cabelo. E calei tudo, não era importante a não ser para mim e para o diário onde descarregava a dor nos braços, a vida adiada e a incerteza. E se falhasse tudo, se não fosse capaz de suportar o sofrimento? A sorte, pelo menos daquela vez, poupou-me.

Um ano depois ali estava eu, de frente para o espelho, a tentar ser a pessoa que tinha sido antes do cancro e até aquele momento, no gabinete do médico, num dia de sol e céu azul, em que soube que não tinha outro caminho a não ser vários meses de quimioterapia e de vários anos sob vigilância. O pior tinha passado e, em 1995, não se perdia tempo com as pessoas que sobreviviam. O cancro era mais do que uma doença, era uma maldição da qual ninguém queria detalhes e dispensava ouvir histórias.

A jovem que eu fora estava enterrada naquelas tardes no hospital, mas ainda acreditava que era possível recomeçar exactamente no ponto em que tinha ficado. E a primeira coisa que fiz foi cortar o cabelo, talvez voltasse a crescer liso como antes; depois comprei uma passagem para Lisboa para visitar os amigos e ver a cidade. Os postais e as cartas falavam de novos projectos, de férias e, apesar de tudo, na minha cabeça, aquelas pessoas com quem tinha partilhado os anos da faculdade estariam como os conhecera.

A vida, para todos eles, continuara enquanto eu fazia quimioterapia. Não fui às festas de despedida dos que foram viver para o estrangeiro, nem aos casamentos, nem os jantares, ao cinema e ao teatro ou beber uma cerveja num bar novo. A rotina e todas as coisas novas moldaram aqueles jovens e até a cidade me pareceu menos calorosa, diferente do que me lembrava. E regressei a casa confusa, sem perceber como algumas daquelas pessoas se tinham transformado em estranhos em menos de um ano.

De uma certa maneira, o tempo e a distância fazem isso, nem todos são amigos para a vida, mas foi mais do que isso. Naquelas férias em 1995, eu tentava desesperadamente recomeçar no ponto em que tinha ficado; os meus amigos seguiram em frente como é natural que se faça. E como acabei por fazer. Perdi parte da inocência, foi-se aquele optimismo militante, mas os meus últimos 30 anos são os de um sobrevivente, com tudo o que isso traz de medo, de culpa, de gratidão. Às vezes tenho saudades da minha inocência antes do cancro, mas nunca me esqueço da sorte que tive.