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Crónicas

A circularidade da política madeirense

1. A circularidade da política madeirense

A Madeira são ilhas e as ilhas têm um destino próprio, fechado sobre si, como um carrossel que nunca pára de girar. A mesma música de feira, a mesma volta, os mesmos cavalos de madeira com a tinta gasta pelos anos. Sempre os mesmos rostos, sempre o mesmo discurso, sempre o mesmo partido, sempre o mesmo chefe, porque o chefe é sempre o chefe, porque se o chefe não fosse chefe outro chefe viria e este chefe foi chefe antes de ser chefe e por isso continuará chefe porque é chefe e ser chefe basta para se continuar a ser chefe. Como um velho relógio de parede que já ninguém ouve, mas que continua a bater as horas numa sala vazia.

Governam porque governam, e porque governam, governam bem, e porque governam bem, continuam a governar, e porque continuam a governar, é porque o povo assim quer, e se o povo assim quer, é porque governam bem, e se governam bem, é porque governam, e se governam, então governam bem, e se governam bem, então continuarão a governar, e se continuarão a governar, é porque governam bem. Como uma criança que se olha ao espelho e repete o próprio nome até o nome perder o sentido e não ser mais do que um ruído, um balbucio, uma coisa disforme sem princípio nem fim.

Dizem que a Madeira se desenvolveu, que a Madeira progrediu, que a Madeira cresceu, mas o que cresceu foi o asfalto, as rotundas, o consumo de betão, as estradas que nunca levam a lado nenhum, os projectos mirabolantes, os milhões que entram e saem, os anúncios de inaugurações, as fotografias nos jornais, os discursos, os cortes de fita, as placas comemorativas com o nome do chefe cravado em letras douradas, como se o chefe fosse um santo, um mártir, um salvador, uma entidade que paira sobre a ilha, a proteger o povo com a sua magnanimidade. O povo que vota porque sempre votou, que acredita porque sempre acreditou, que segue porque sempre seguiu, como se a história fosse um comboio numa linha única sem desvios, um comboio que parte de um passado nebuloso e avança para um futuro que já está escrito, que já está decidido, que já está garantido.

E a oposição? O que faz a oposição? Onde está a oposição, esse fantasma pálido que assombra corredores vazios, que levanta a mão em assembleias onde ninguém escuta, que fala para jornais que ninguém lê, que escreve comunicados que ninguém entende, que espera e espera e espera, à espera de uma oportunidade que nunca chega, à espera de um escândalo que nunca é escândalo, à espera que a maré vire sem saber que a maré já virou tantas vezes e que no fim o mar é sempre o mesmo, indiferente, imóvel, inatingível. A oposição que se indigna, que protesta, que promete mudar tudo, que jura que desta vez será diferente, mas que sabe que não será, que, no fundo, conhece bem a força da inércia, o peso do hábito, a segurança do conhecido, a resistência do medo. E quando chega a altura, quando se abrem as urnas e se contam os votos, o círculo volta a fechar-se, a história recomeça, o chefe continua chefe, e a oposição volta ao seu canto, a preparar-se para a próxima vez, para a próxima espera, para a próxima derrota, para o próximo silêncio.

E o povo, esse corpo difuso que enche as praças quando há festas e as esvazia quando há protestos, que sabe tudo e finge que não sabe, que vê tudo e finge que não vê, que encolhe os ombros porque encolher os ombros é mais fácil do que perguntar, que critica baixinho e nunca demasiado alto, não vá alguém ouvir, que se indigna ao jantar e esquece ao pequeno-almoço, que diz que está farto, mas vota no mesmo, que jura que para a próxima é diferente, mas quando chega a próxima é tudo igual. O povo que conhece o jogo, mas não quer jogá-lo, que sabe haver nomes que não se dizem em vão, que sabe a quem se deve telefonar, que sabe que certas portas só se abrem com as palavras certas e certos favores devem ser retribuídos com discrição. O povo que ri dos políticos, mas se curva perante eles, que desconfia, mas precisa, que resmunga, mas aceita, que sonha com mudança, mas teme-a mais do que a deseja.

E assim tudo continua, porque sempre continuou, e porque sempre continuou, continuará. Os mesmos rituais, os mesmos discursos, as mesmas promessas, os mesmos jantares em restaurantes escolhidos a dedo, os mesmos brindes a sorrir para a câmara, os mesmos apertos de mão demorados, as mesmas juras de lealdade inquebrantável. A estabilidade é garantida, a confiança renovada, a prosperidade assegurada, o progresso imparável. Que felicidade saber que tudo está certo, que tudo está no seu devido lugar, que nada precisa de ser mudado, que nada precisa de ser pensado, que nada precisa de ser questionado. E se, por um instante, uma sombra de dúvida ameaçar esta harmonia perfeita, bastará um novo anúncio, uma nova estrada, uma nova obra indispensável, uma nova fotografia, uma nova promessa, um novo discurso e pronto, problema resolvido. Porque o essencial não é governar, não é reformar, não é decidir. O essencial é repetir, repetir até que todos saibam de cor, até que todos repitam também, até que a própria realidade se renda e aceite, resignada, que este é o melhor dos mundos, que melhor do que isto é impossível, que melhor do que isto nem se pode imaginar.

2. Contrato de Cidadania

Portugal nunca teve uma política de imigração coerente. Hoje, a imigração tornou-se uma dessas questões impossíveis de ignorar, e os habituais bem-pensantes alternam entre um humanitarismo infantil e uma xenofobia primária, incapazes de conceber uma solução funcional. A imigração precisa de regras. E essas regras não podem ser ditadas nem pelo improviso burocrático, nem por uma visão ingénua da bondade universal.

A ideia de um contrato de cidadania não nasce de um capricho tecnocrático, nem de um delírio securitário. Trata-se, antes, de um mecanismo mínimo de organização de um fenómeno que pode desestabilizar sociedades inteiras se for tratado com a leviandade habitual. O Estado tem, obviamente, o direito de definir quem acolhe, mas deve fazê-lo segundo princípios racionais, e não ao sabor da conveniência eleitoral ou da indignação mediática.

O problema de fundo é que Portugal nunca decidiu o que quer da imigração. Vive preso entre dois clichés, igualmente absurdos. O primeiro é o da imigração como um “direito humano absoluto”, como se qualquer indivíduo no planeta tivesse automaticamente o direito de se instalar onde bem entender, sem critérios, sem regras, sem contrapartidas. O segundo é o da “invasão”, a ideia de que a imigração é sempre e necessariamente uma ameaça, uma conspiração silenciosa para destruir a “identidade nacional”. Como sempre, o país oscila entre um moralismo ingénuo e um pânico histérico.

A ideia seria simples: quem quisesse estabelecer-se em Portugal teria de aceitar um conjunto claro de deveres em troca de um estatuto legal estável, com direitos progressivos consoante a sua integração. O que se exige não é absurdo. Exige-se que o emigrante seja identificado e legalizado, que comprove a ausência de antecedentes criminais, que contribua para a sociedade portuguesa, seja pelo trabalho, seja pelo pagamento de impostos, seja pelo cumprimento das leis. Que aprenda a língua, que demonstre conhecimento básico da sociedade portuguesa, que participe na vida cívica e económica do país.

E, em troca, o Estado português garantiria que um emigrante que assinasse este contrato teria acesso progressivo a serviços públicos, poderia trabalhar sem discriminação legal, e, ao fim de um período estipulado, teria direito a um processo de naturalização. Mas tudo isto sob uma lógica de reciprocidade, onde os benefícios não fossem uma dádiva incondicional, mas sim o resultado de um processo de integração mensurável e objectivo. O modelo existe já noutros países e não tem nada de extraordinário. Quem tem de se adaptar é quem chega, não quem já cá está.

A resistência virá, como sempre, de todos os lados. A esquerda verá nisto um plano sinistro de “criminalização da imigração”, porque a esquerda oficial já não sabe distinguir entre regulação e repressão. A direita tradicional hesitará entre um nacionalismo de opereta e um pragmatismo económico sem convicção. A burocracia estatal alegará dificuldades técnicas, porque a burocracia estatal é especializada em provar que nada pode ser feito. E, no fim, como sempre, Portugal continuará a improvisar, empurrando o problema com a barriga para o futuro, fingindo que se pode ter uma imigração desregulada sem consequências sociais, económicas ou políticas.