DNOTICIAS.PT
Fact Check Madeira

É pacífico o modelo espanhol do subsídio à mobilidade aérea?

None

O deputado socialista Carlos Pereira, madeirense eleito pelo círculo de Setúbal à Assembleia da República, prepara-se para apresentar uma proposta que pretende alterar radicalmente o modelo de subsídio à mobilidade aérea entre as Regiões Autónomas e o continente. Conforme noticiou hoje o DIÁRIO na edição impressa, a proposta, que será apresentada por Carlos Pereira ao Grupo Parlamentar do PS para ser validada e depois levada à Assembleia da República, inspira-se no modelo espanhol aplicado nas Canárias e Baleares e promete eliminar o esforço financeiro inicial das famílias madeirenses e açorianas.

Diz o deputado madeirense que “muitas das companhias que operam nas ligações entre o continente e as Regiões Autónomas - easyJet, Ryanair, só para referir as mais importantes - operam igualmente em Espanha e nas ligações com as Ilhas Canárias e Baleares”. Mas será mesmo assim?

Além disso, adianta o parlamentar, “em Espanha, essas companhias aplicam automaticamente a bonificação de 75% para residentes nos seus sistemas de emissão de bilhetes, incluindo canais online, bilhetes emitidos por agências e GDS, e fazem a validação eletrónica da residência através do Sistema de Acreditación de Residencia Automatizado – SARA (…) O modelo espanhol é um caso de estudo e de referência, amplamente aplicado e testado, incluindo com avaliações empíricas sobre os seus efeitos económicos”. Mas será assim tão pacífico este modelo espanhol?

O DIÁRIO foi contactado por leitores com dúvidas a este respeito, por isso, procuraremos responder a estas duas questões. Não está em causa a iniciativa parlamentar socialista, que é válida e oportuna, apenas estas duas questões que procuraremos analisar.

Em primeiro lugar, a questão das companhias que operam em Portugal e que são apontadas como operando em Espanha e nas ligações com as Ilhas Canárias e Baleares. Se é verdade que a Ryanair opera nos dois países, o mesmo já não é exactamente verdade em relação à easyJet, que não opera rotas domésticas em Espanha elegíveis para o subsídio. Esta companhia aérea tem sempre dito que é contra o esquema espanhol e que nunca ficaria credora do Estado, financiando ela própria as viagens. Logo, não opera nas ligações com as Ilhas Canárias e Baleares elegíveis para o subsídio. É muito simples: das quatro companhias aéreas que operam rotas nacionais na Madeira, apenas a Ryanair opera também rotas nacionais Canárias-Península e Baleares-Península, participando, assim, no modelo de subsídio social de mobilidade que vigora em Espanha.

A outra questão, e a que motiva este Fact-Check, tem a ver com o próprio modelo e a questão do financiamento, que estão bem longe de ser consensuais e pacíficos, conforme tem noticiado a própria imprensa espanhola nos últimos anos.

Em Janeiro deste ano, o jornal espanhol Cinco Días do El País escrevia que o Governo tinha encerrado o ano de 2024 com uma dívida tão elevada - 600 milhões - quanto invulgar face a um grupo de companhias aéreas que começavam a queixar-se de um buraco milionário nas suas contas. Trata-se das que ligam as ilhas Canárias e Baleares com a península, bem como as que voam de Ceuta e Melilha para o resto do território espanhol. Esse tráfego é subsidiado em 75% sobre o preço do bilhete para os residentes nos territórios extrapeninsulares e que tenham nacionalidade espanhola ou da UE, mas o pagamento destas ajudas públicas não estava a entrar na caixa das companhias aéreas e, quando entrava, tinha muitos meses de atraso.

Las aerolíneas reclaman 600 millones a Transportes por los vuelos subvencionados a canarios y baleares en 2024

Iberia, Binter, Air Europa, Vueling o Ryanair tienen por cobrar de Aviación Civil buena parte de las liquidaciones del año pasado

Entre as companhias afectadas destacavam-se a canária Binter, o grupo Iberia (incluindo a Air Nostrum), Air Europa e Vueling. Todas elas deixaram nas mãos da Associação de Linhas Aéreas (ALA) a procura de uma solução urgente. Consultadas pelo referido jornal, nem a ALA nem o Ministério dos Transportes quiseram fazer comentários sobre as conversações então em curso. Há casos, como o da Binter, em que a maior parte das receitas depende do tráfego bonificado. Praticamente metade do saldo devedor do Governo era com esta companhia que oferece conectividade às Canárias. À Iberia deviam-se cerca de 200 milhões, a Air Europa tinha por receber uns 50 milhões de euros, e a Vueling, idem. A dívida do Estado perante a Ryanair seria algo menor.

Escrevia o jornal que os subsídios ao transporte aéreo, de e para os territórios extrapeninsulares (também se bonifica o marítimo), experimentaram um forte incremento nos últimos anos devido à maior procura de viagens e à subida das percentagens da ajuda ao viajante (em 2018 passou-se de 50% para 75% de bonificação sobre o preço do bilhete). Em 2023 contabilizaram-se 13 milhões de bilhetes aéreos suportados por dinheiro público, acima dos 11 milhões do ano de 2019. O dinheiro do Estado que apoiou a mobilidade aérea de canários e baleares roçou nesse ano de 2023 os 1.000 milhões de euros em crédito executado, face a 560 milhões de dotação orçamental (825 milhões incluindo o transporte marítimo). Este último valor repetiu-se em 2024 e também foi amplamente superado, ultrapassando os 1.000 milhões. O problema, apontavam diferentes fontes, é que no ano passado se partiu com um orçamento prorrogado e insuficiente. Uma modificação de crédito de 170 milhões, aprovada a 24 de Setembro de 2024 pelo Conselho de Ministros espanhol com a aplicação do Fundo de Contingência, também não cobriu o défice.

Ora, num contexto em que as companhias aéreas cobram directamente dos viajantes 25 de cada 100 euros de um bilhete aéreo, e os 75 euros restantes devem ser entregues pela Administração, qualquer atraso no reconhecimento e pagamento dos subsídios resulta num problema para as empresas. Sobretudo quando as empresas têm custos recorrentes a atender, como o do combustível ou o pessoal.

A jusante também sofrem as agências de viagens pelo entupimento nas suas particulares liquidações com as companhias aéreas, um problema que já se tornou patente em meados do ano passado e sobre o qual a Aviação Civil ia analisar soluções. Só nas Canárias contabilizavam-se umas 300 pequenas agências activas na venda de bilhetes subsidiados. Estas recebem uma comissão de gestão em parte também bonificada e cujo pagamento é gerido pelas companhias aéreas perante o Ministério dos Transportes.

Em Maio deste ano, o mesmo jornal escreveu que o Governo Espanhol procurava apoios para tapar o buraco de milhões pelos voos subsidiados para as ilhas. A solução para a milionária dívida do Governo - que se acumulava face às companhias aéreas, pelo não pagamento durante vários meses do subsídio dos voos de Canárias e Baleares para ligar com a península -, teria de passar pelo plenário do Congresso. Os apoios parlamentares eram apontados como essenciais para aliviar a dívida.

El Gobierno busca apoyos para tapar el agujero de 319 millones por los vuelos subvencionados a las islas

El crédito extraordinario para cubrir los impagos de 2024 a las aerolíneas se espera en el pleno de mayo en el Congreso

E concluía que o problema do atraso no pagamento por parte das empresas reside na acumulação de gastos fixos que não são cobertos com a simples arrecadação de 25% do bilhete, como a compra de combustível, as folhas de pagamento do pessoal, as tarifas aeroportuárias, os serviços em terra ou a manutenção dos aviões.

Em suma: cada uma das companhias aéreas que voa entre a península e esses territórios desempenha o papel de “colaboradora” do Governo, tal como expressa a normativa, ao encarregar-se da execução do programa. No momento da reserva por parte do viajante, as companhias recebem 25% do preço do bilhete e enviam o cupão correspondente à Aviação Civil para que lhes sejam liquidados os restantes 75%. A carga de gestão que acompanha este sistema, no qual se comprova cupão a cupão, faz com que esses pagamentos da Administração arrastem certa desfasagem, mas nunca a registada em 2024. Os alarmes, tal como avançou o Cinco Días, saltaram no final do Verão de 2024 ao comprovar-se que a dívida engordava desde Março de 2024. Embora parte dos valores já tenha vindo a ser paga, o problema de base mantém-se.

PS: Na notícia de hoje do DIÁRIO, onde se lê “secretário regional da Economia”, essa referência diz respeito ao antigo titular, Eduardo Jesus, e não ao actual, José Manuel Rodrigues, que não tem a pasta dos transportes aéreos.

É pacífico o modelo espanhol do subsídio à mobilidade, proposto pelo PS para ser replicado na Madeira e Açores?