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Crónicas

Portugal na CEE

1.Na rádio, na TV
Nos jornais, quem não lê?
Portugal e a CEE
Quanto mais se fala menos se vê
Já estou farto e quero ver
Quero ver Portugal na CEE
Quero ver Portugal… na CEE
- Vítor Rua/GNR

2. Antes da adesão à CEE, Portugal não correspondia ao postal folclórico que agora se exibe com orgulho turístico, nem ao mito piedoso da pobreza virtuosa que alguns repetem como um refrão de infância para não encarar o que fomos realmente. E o que fomos realmente foi um país cansado, esmagado entre a inflação que roía o salário como traça voraz e um Estado que fingia governar enquanto pedia ao FMI autorização para respirar, um país onde o futuro chegava sempre atrasado e a esperança era um hábito supersticioso. A nostalgia que hoje se ouve nas mesas de café não fala do país, mas da idade que já não volta, como se a juventude pudesse ser confundida com prosperidade. A inflação dos 29 por cento em 1984 não era um número, era uma espécie de ameaça doméstica a entrar pela porta da cozinha, a desfazer o pouco que havia, e quem suspira agora pelo “antes” suspira apenas por si.

No início dos anos 80, Portugal avançava às apalpadelas, como quem atravessa um corredor escuro sem saber onde fica o interruptor, e, ao mesmo tempo, levava às costas o PREC, a descolonização e os choques petrolíferos, tudo misturado numa confusão histórica que nem os mais habilidosos explicadores de serviço conseguiam ornamentar. O Estado, com a dignidade alquebrada de quem sabe que manda pouco, gastava mais do que podia, desvalorizava o Escudo para disfarçar a própria impotência e alimentava a ilusão de uma competitividade que era, no fundo, empobrecimento disfarçado. O cidadão entendia isto sem necessidade de teorias: o salário subia em papel e desaparecia na mercearia, o crédito com juros acima dos 20 por cento era uma roleta russa financeira, e comprar casa era mais um capítulo da literatura fantástica do que um projecto de vida. Improvisavam-se anexos, construía-se em cima, puxavam-se paredes como quem tenta enganar o destino.

A infraestrutura do país era uma espécie de mapa incompleto, feito de estradas estreitas que pareciam fugas e regressos, com as autoestradas limitadas a uma nesga à volta de Lisboa, e cada viagem longa era uma marcha penosa por curvas e bermas esburacadas. No subsolo, o atraso continuava: saneamento básico incompleto, fossas sépticas como relíquias sobreviventes de uma época anterior, água canalizada que falhava, rios doentes, apagões dia sim, dia não. A mortalidade infantil era indigna e teimava em lembrar-nos que a pertença à Europa, nessa altura, era uma fantasia distante. A indústria vivia à custa de sectores frágeis, a agricultura oscilava entre minifúndio pobre e latifúndio preguiçoso, e a estratégia nacional resumia-se a uma palavra que atravessava fronteiras como uma ferida: emigração.

Resumindo o que não precisa de grandes arabescos: antes de 1986, Portugal era um país pobre e cansado, mantido de pé por um Estado que sobrevivia mais do que governava, desvalorizava a moeda como quem pede desculpa e esperava que a população continuasse a obedecer por inércia. O FMI era visita habitual, o futuro era uma nota promissória e o país vivia pendurado num fio que ameaçava partir.

A adesão à CEE não foi uma conversão mística, foi um gesto resignado e lúcido, destes que se tomam quando se percebe que continuar sozinho é a maneira mais rápida de desaparecer. Cedemos parte da soberania formal, que já de qualquer modo não exercíamos com grande eficácia, e recebemos em troca estabilidade, regras previsíveis e dinheiro para fazer aquilo que nunca tínhamos conseguido fazer: construir um país minimamente funcional. A retórica europeísta veio depois, com pompa, porque o que havia no início era a necessidade.

Com a entrada na Comunidade, o regime monetário sofreu uma espécie de exorcismo. Acabaram-se as desvalorizações sucessivas que mascaravam a pobreza. A inflação deixou de ser um ruído permanente e tornou-se uma figura conhecida, controlável, domesticada. O crédito democratizou-se, como se o país tivesse recebido, finalmente, uma chave que abria outras portas, e as famílias, que antes viviam a fazer contas de sobrevivência, puderam planear comprar casa sem cair imediatamente na bancarrota. Claro que o preço dessa nova liberdade veio depois, com o endividamento que se acumulou como poeira nos móveis. A liberdade raramente é gratuita.

As finanças públicas, outrora habituadas ao sufoco, encontraram uma previsibilidade que parecia quase estrangeira. A dívida tornou-se gerível, o Euro substituiu a velha prática de remendos monetários e o país passou a respirar num sistema que, embora imperfeito, lhe deu o que nunca tivera: tempo. Autonomia, pouca, estabilidade, alguma.

O rendimento nacional acompanhou este movimento. Subimos rapidamente na comparação europeia, aproximámo-nos da média, acreditámos durante alguns anos que a convergência seria inevitável, e depois parámos, como quem chega ao patamar de uma escada e não percebe para que lado continua a subida. Investimos demasiado em betão, demasiado pouco em criatividade económica, e acabámos com licenciados a mais para empregos a menos, um país que forma quadros e os exporta por falta de alternativa.

No território, a mudança foi quase brutal. As autoestradas multiplicaram-se, redesenharam a geografia e aproximaram cidades que durante séculos viveram como ilhas terrestres. Mas cada avanço escondia a sua própria derrota: o interior deserto, os jovens que partiam, a sensação de que Portugal, apesar de mais conectado, se tornara mais desigual. O saneamento, esse, foi uma revolução silenciosa, quase invisível, mas decisiva: água limpa, esgotos tratados, rios recuperados, qualidade de vida que passou a ser normal sem que alguém desse por isso. A Europa pode não ter criado prosperidade, mas criou decência.

Na agricultura, a PAC expulsou quem não podia modernizar-se e deu escala a quem podia. Ficámos com menos agricultores, mais produtividade em alguns sectores e vastas zonas de abandono florestal entregues ao destino e aos incêndios. Na indústria, perdemos muito, salvou-se pouco, e aquilo que se salvou fê-lo à custa de reinvenção dolorosa. O turismo tornou-se o nosso ganha-pão, um ganha-pão instável, cheio de brilho e vazio de segurança, que transforma cidades e vidas, mas depende sempre do humor do mundo.

Na saúde, os avanços foram tão grandes que hoje parecem banais. A mortalidade infantil caiu para níveis europeus de excelência, a esperança de vida aumentou dez anos e o SNS, que nasceu precário, tornou-se um dos pilares do país moderno. Depois envelhecemos e esquecemo-nos de adaptar o sistema que tratou logo de se degradar. Na educação, deixámos para trás o analfabetismo e enchemos universidades. Mas continuamos a tratá-las como fábricas de mão-de-obra qualificada para exportação.

Demograficamente, passámos da abundância de filhos para a escassez, e de país de emigrantes para país de imigrantes, com todas as contradições que isso expõe. A sociedade tornou-se mais diversa, menos pacata, mais ansiosa também.

Nos direitos, sobretudo das mulheres, a diferença entre o antes e o depois é quase total. A lei deixou de as tratar como apêndices domésticos e passou a reconhecê-las como cidadãs plenas. Não por mérito nacional, mas porque a Europa não tolerava outra coisa. E é por isso que a igualdade total é ainda um sonho. Mas para lá caminhamos.

E, debaixo de tudo isto, corria o mesmo fio: os fundos europeus, essa transfusão contínua que permitiu ao país construir o que não teria conseguido pagar sozinho. Os fundos modernizaram-nos, mas também nos viciaram. Criaram estradas e, ao mesmo tempo, criaram dependências, clientelas, obras supérfluas feitas para encaixar em programas, não para resolver problemas.

No final, o balanço é claro. A Europa foi a maior força de modernização que Portugal conheceu desde o século XIX. Sem ela, estaríamos num atraso difícil de imaginar. Mas a Europa não reformou o Estado português, não destruiu o clientelismo, não inventou por milagre uma economia produtiva. Isso era trabalho nosso. Não o fizemos.

Por isso, culpar a Europa pelo que não somos é preguiça intelectual. A Europa deu-nos a possibilidade de crescer. Preferimos um modelo cómodo para alguns e insuficiente para quase todos. Continuamos país de serviços baratos, turismo permanente e salários pequenos.

Antes da CEE, o problema era escapar da pobreza. Depois da CEE, o problema é sair da irrelevância. Entrámos no comboio europeu. Continuamos, no entanto, sentados no mesmo vagão de sempre, a ver a paisagem passar, sem grande pressa de chegar a lado nenhum.