Atentado 349
A CE atenta contra as RUP e contra todos os cidadãos europeus que vivem e resistem nestas regiões
Sim, são factos. Somos pequenos e insulares, com relevo e clima difíceis. Estamos distantes e isolados, coabitamos em mercados de pequena escala, vulneráveis às intempéries e às alterações climáticas. Sabemo-lo! Mas somos europeus! Acrescentamos dimensão ao velho continente! Dimensão oceânica e de plataforma intercontinental. Dimensão na biodiversidade e um sem fim de património natural que diversifica, amplia e dá expressão à Europa no mundo. Levamos a Europa do Atlântico Norte à América do Sul e ao oceano Índico. Somos a expressão europeia fora das fronteiras continentais! Somos embaixadores da Europa no mundo!
Há 30 anos reconheceram-nos regiões ultraperiféricas, com fragilidades próprias em termos sociais e económicos. Consagraram-nos em artigo próprio, o n.º 349 do Tratado de Funcionamento da União Europeia, Lei em Jornal Oficial da UE. Consagraram-nos igualmente medidas específicas destinadas a esbater e mitigar os impactos sociais e económicos que sofremos diariamente pela nossa condição de europeus ultraperiféricos. Como medida mais precisa para concretizar este desiderato foi criado o Programa de Opções Específicas para fazer face ao Afastamento e à Insularidade, o conhecido POSEI. Um programa que tem em conta as especificidades das RUP, e que, através de regulamento próprio, ampara os sobrecustos que temos com as nossas produções agrícolas e minimiza os custos acrescidos com a importação de bens essenciais ao consumo. Em 2009 foi definido o envelope financeiro para este programa, sendo a sua gestão feita diretamente entre as instâncias europeias e cada uma das RUP, sem interlocutores, no respeito pelas autonomias e pela capacidade de cada RUP decidir como quer aplicar esse envelope financeiro. De 2009 até hoje o orçamento para o POSEI mantém-se inalterado, mesmo que só pela atualização da inflação se tenha já perdido mais de 40%.
Nas vésperas de mais uma proposta de um Orçamento Plurianual para a UE 2028 - 2034, reivindicava-se e reivindica-se a atualização do POSEI para a realidade atual, e a introdução de uma percentagem fixa anual que protegesse a taxa de inflação, sem mais negociações adicionais. Paralelamente, pretendia-se distinguir o POSEI Agricultura da criação de um novo POSEI para os Transportes e um POSEI para as Pescas. Eram estas as expetativas e são estas as necessidades. Tudo isto a Comissão Europeia deitou por terra com uma proposta que fere a sua própria génese. Foi mais longe, num atentado sem precedentes, incluiu o POSEI no envelope global da PAC - política agrícola comum -, que por si só sofre um corte de 20%, e que será gerido por cada Estado Membro. De uma assentada, a Comissão volta costas às RUP e viola o seu próprio Tratado, fazendo tábua rasa do artigo 349. Tudo isto a pretexto de uma suposta simplificação na gestão dos fundos, criando “a classificação de RUP em desenvolvimento, com a diminuição das taxas de cofinanciamento de 85% para 60%, o que se aplicaria de imediato à RAM”. Por outras palavras, castiga o aluno menos favorecido por ter tido boas notas!
Em síntese, a Comissão Europeia (CE), em nome de uma orientação política que todos sabemos: a de rearmar a Europa, ataca as políticas de coesão social, atinge os mais distantes e menos favorecidos, coarta na política agrícola, como se soberania alimentar não fosse o primeiro meio de defesa e ignora que o projeto europeu nasceu, precisamente, com o objetivo de sarar as cicatrizes de uma guerra. A CE aborta a sua própria génese e a essência da União, enquanto projeto de paz no mundo e de coesão social entre os povos, países e regiões. A CE renega a sua origem, para definitivamente mergulhar na dimensão burocratizada, que é já seu apanágio político, distante e regulamentada, deitando por terra o sonho europeu, distanciando cidadãos de instituições e de políticas
Ser região ultraperiférica não é opção. Ser região ultraperiférica é condição para toda a vida. O PIB suba ou desça, RUP será sempre RUP. Esquece-se a elevada volatilidade do PIB no contexto das RUP, enquanto indicador-chave de elegibilidade aos fundos estruturais. Jamais se pode recomendar que este seja um indicador fiável para abarcar, por si só, os diversos constrangimentos da ultraperiferia. Sem a dotação de meios financeiros adequados e autónomos, a Estratégia da Comissão para as RUP estará condenada à irrelevância e ao abandono, condenando-nos igualmente ao retrocesso social e económico.
A CE atenta contra o artigo 349! A CE viola-o na sua essência e amplitude! Ou seja, a CE atenta contra as RUP e contra todos os cidadãos europeus que vivem e resistem nestas regiões. Ainda acreditamos no projeto europeu. Mas já não acreditamos na vaga de políticos europeus tecnocratas, centralistas sem visão política de mundo e das transformações sociais e geoestratégicas que os tempos atuais encerram. Se a Comissão não reconhece as especificidades, a dimensão e a importância que as RUP têm para a amplitude da Europa no mundo, então se calhar as RUP devem questionar se querem ser europeias. Se os atuais líderes europeus não têm visão nem liderança para a dimensão das RUP no seio da União, nós também não temos de os reconhecer. RUP seremos para sempre. Todavia, não temos de ser para sempre europeus!