Ciclos de Luz e Sombra
O dia 1 de novembro, que hoje conhecemos como Dia de Todos os Santos, tem raízes muito mais antigas do que a tradição cristã. Antes de ser santificado, era o Samhain celta — o festival que marcava o fim das colheitas e o início do inverno, o tempo em que o véu entre os vivos e os mortos se tornava mais ténue. Nessa passagem de ciclo, acreditava-se que os antepassados regressavam por instantes, e acendiam-se fogueiras para os honrar e guiar. Séculos depois, a Igreja cristianizou a data, mas o seu significado profundo manteve-se: lembrar os/as que vieram antes e reconhecer o elo invisível que nos une.
Noutras latitudes, como no México, essa mesma ligação manifesta-se no Día de los Muertos — uma celebração colorida e festiva onde a morte não é tabu, mas continuidade. As famílias montam altares com flores, velas e fotografias, convidando os mortos a regressar, por um dia, à mesa dos vivos. É uma lição de ternura e aceitação: quem amamos nunca desaparece totalmente.
Mas o mundo moderno parece ter perdido o sentido dessa comunhão. As redes sociais amplificam o ruído e a pressa, enquanto o silêncio — esse espaço onde se escuta a memória e o coração — vai rareando. A cultura imediatista do escândalo substituiu a da reflexão. O maldizer tornou-se entretenimento. A violência, o extremismo e a intolerância, produtos que vendem. A atenção, na verdade, vende-se ao que choca, ao que indigna, ao que divide. Poucas pessoas parecem recordar-se de que as palavras constroem ou destroem, e que, em última instância, o que alimentamos com o olhar e o discurso é o que cresce no mundo.
Vivemos uma crise de valores, onde a empatia é escassa e o amor-próprio parece opcional. Quando não nos sentimos suficientes, aceitamos pouco — nas relações, nas amizades, na forma como somos tratados/as. É assim que a solidão se instala, mesmo entre pessoas acompanhadas ou permanentemente “ligadas”. Falta-nos presença verdadeira. Nunca estivemos tão ligados/as e, paradoxalmente, tão sós.
E enquanto nos afastamos de nós e das outras pessoas, o planeta reflete esse caos: muitos milhares morrem em conflitos armados todos os anos, vítimas do mesmo medo e intolerância que germina dentro de cada ser humano. A guerra exterior é apenas o espelho da guerra interior.
Por isso, esta transição simbólica recorda-nos que a vida é feita de ciclos: de luz e de sombra, de presença e de ausência, de fim e de recomeço. Mais do que flores e velas, precisamos de um gesto mais profundo: reconciliar-nos com o que somos, com a nossa história e com a nossa sombra. Com o que desejamos, com os nossos anseios e propósito. A verdadeira revolução é interior. Ser feliz não é ignorar a dor, mas transformar o olhar — escolher a paz, o perdão e a empatia, mesmo quando o mundo nos convida ao contrário.
Honrar os mortos é também honrar os vivos. E talvez o maior gesto de coragem seja fazermos escolhas para alimentarmos a serenidade. Porque só quando a paz nasce dentro de cada pessoa pode irradiar para fora. E sem essa luz interior, por mais que avancemos, não vamos a lado nenhum.