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Crónicas

Carta aberta ao Excelentíssimo Sr. Secretário Regional do Turismo, Ambiente e Cultura

Exmo. Senhor Secretário,

a sua “doutrina da elasticidade”, assim mesmo dita com uma gravidade de professor a explicar fórmulas complicadas a um auditório sonolento, como se o facto de pronunciar a palavra elasticidade lhe desse uma autoridade incontestável, como se os números pudessem silenciar o incómodo de quem vive aqui, não passa de um biombo. Um biombo elegante, académico, cheio de curvas e tabelas que parecem ciência, mas que são apenas um disfarce, uma forma de empurrar para baixo do tapete a saturação que se sente na pele, no trânsito, nos bairros desertos de vizinhos, no preço das casas que se tornou uma piada cruel.

Elasticidade, Senhor Secretário, é um termo útil para os manuais, para o estudante que precisa de passar no exame, para o relatório que tem de impressionar em Bruxelas. Serve para medir a relação entre o preço e a procura, para traduzir em gráficos a ideia de que se subir o custo das dormidas os turistas ainda assim continuam a vir. Mas a elasticidade que o senhor exibe, com aquele ar de quem descobriu o Santo Graal do turismo, é cega. Cega à vida dos que aqui moram. Cega ao mercado imobiliário que deixou de ser lugar de abrigo para se transformar em máquina de expulsar. Cega às filas intermináveis nas veredas, aos trilhos transformados em passagens de formigas humanas, ao lixo deixado por todo o lado. Cega ao facto de que não há curva que meça a exaustão de um povo quando sente que já não tem casa nem sossego.

E depois há esse seu orgulho na chamada “elasticidade da oferta”, como se a oferta fosse um armazém em que se podem empilhar mais camas, mais quartos, mais pacotes turísticos, e eu pergunto-lhe: onde é que o senhor vê essa elasticidade? Nos picos das montanhas que não se multiplicam? Nas levadas que não se podem alargar? Nos lugares que eram silêncio e já são ruído? A oferta, Senhor Secretário, é limitada, finita, irrepetível. São espaços que não se inventam por decreto, são ecossistemas que não se clonam, são culturas que não sobrevivem à massificação sem perderem alma. A sua “oferta” é feita de coisas que não são elásticas: são frágeis, quebradiças, condenadas se lhes pedir mais do que podem dar.

Há ainda a questão da sujidade que grassa pelos lugares mais visitados, essa realidade, da sua competência porque acumula na sua Secretaria os assuntos do ambiente, que não cabe em nenhum relatório mas que salta aos olhos de qualquer um que suba ao Pico do Areeiro, que desça ao Caldeirão Verde ou que se aventure nas levadas mais frequentadas: restos de embalagens, papéis gordurosos, garrafas de plástico, máscaras esquecidas, fezes humanas escondidas às pressas atrás de uma rocha, urina deixada em cantos que já cheiram antes de se chegar perto. A paisagem que o senhor vende como intocada está coberta de cicatrizes invisíveis nas brochuras, mas bem reais para quem lá passa. E como se não bastasse, há turistas que, na ânsia de tirar fotografias coloridas, alimentam as aves com restos de pão e batatas fritas, alterando-lhes o comportamento, tornando-as dependentes do lixo humano, corroendo silenciosamente os equilíbrios naturais. A sua doutrina da elasticidade não mede isto, Senhor Secretário: não mede o odor do descuido, não mede a proliferação de aves obesas a disputar lixo, não mede a degradação lenta e banal do que deveria ser sagrado.

E o mais perverso é o uso político que o senhor dá a este palavreado. Porque ao falar em elasticidade o que faz é retirar o problema do campo da política para o empurrar para o campo da técnica. Transforma uma questão de vida quotidiana, o preço da habitação, a perda de autenticidade, o desgaste ambiental, num problema de especialistas, como se a população não tivesse nada a dizer porque não sabe ler gráficos. É a velha astúcia tecnocrática: esconder o conflito social atrás de números, tratar os que se queixam como ignorantes ou emocionais, desqualificar a dor porque não cabe em tabelas.

Mas a saturação, Senhor Secretário, não se mede pelo número de turistas que ainda estão dispostos a vir. Mede-se pelo momento em que os custos sociais e ambientais ultrapassam largamente os benefícios. E esse momento já chegou, queira ou não queira admiti-lo. Chegou quando as casas ficaram incomportáveis. Chegou quando a paisagem começou a ser destruída. Chegou quando a cultura se tornou um espetáculo encenado e a ser substituída pelo entretenimento de que tanto gosta. Chegou quando os madeirenses passaram a sentir-se estrangeiros na sua própria terra.

E, ainda assim, o senhor insiste. Fala da elasticidade como quem fala de uma salvação, como se a ilha fosse uma corda que pode esticar até ao infinito. Mas não é. A corda está gasta, frágil, a ranger. E o senhor continua a puxá-la.

Senhor Secretário, quando a corda rebentar, não será apenas um estoiro que se esquece no dia seguinte como uma notícia menor. Rebentar a corda é perder casas, perder bairros e lugares, perder silêncio, perder a própria ideia de que a Madeira é uma terra onde se pode viver. Rebentar a corda é olhar para as montanhas gastas de tanta fotografia, para as veredas erodidas até ao osso, para as vilas antigas esvaziadas de vizinhos e ocupadas por apartamentos de fim-de-semana, e perceber que aquilo que era lugar passou a ser cenário. Um cenário para turistas de passagem, mas já não uma casa para quem aqui nasceu.

E quando isso acontecer, e já está a acontecer, só o senhor não quer ver, de nada lhe valerão as curvas da elasticidade. Porque a elasticidade não mede o desespero de um casal jovem que procura arrendar e encontra preços impossíveis. Não mede a exaustão de quem todos os dias gasta horas em trânsito porque o centro já não é seu. Não mede o mal-estar de um povo que se sente usado como figurante na sua própria terra. A elasticidade é uma palavra vazia perante a realidade do desalojamento, do congestionamento, da degradação cultural.

O senhor fala como se a Madeira fosse apenas um produto no mercado global do turismo. Como se tudo se resumisse à pergunta: “pagam ou não pagam?” Mas a questão verdadeira não é essa. A questão é: a que preço paga a sociedade madeirense este modelo? A que preço paga a ilha em termos de ecossistemas destruídos, de vizinhanças perdidas, de autenticidade sacrificada? A que preço paga o futuro quando hoje se troca qualidade de vida por estatísticas de crescimento?

A sua doutrina, Senhor Secretário, é cruel porque finge neutralidade. Fala em linguagem técnica, mas esconde a escolha política. A escolha de preferir turistas a residentes. A escolha de preferir rendimento imediato a sustentabilidade. A escolha de preferir números a pessoas. É por isso que a sua doutrina não é só um erro: é uma afronta. Porque reduz os madeirenses a variáveis secundárias, a custos externos que o modelo decide ignorar.

E repare, Senhor Secretário: não é preciso ser especialista para perceber o que se passa. Basta sair à rua, basta tentar alugar casa, basta caminhar num trilho turístico, basta olhar para os preços pressionados por uma inflação que teima em não baixar, basta escutar o mal-estar. O povo não precisa de aprender elasticidade para saber quando está saturado, quando está farto. A experiência quotidiana é mais verdadeira do que qualquer relatório. E o que ela diz é simples: a Madeira chegou ao limite.

Senhor Secretário, escrever-lhe esta carta é também um aviso. Porque o senhor pode continuar a citar relatórios, mas a realidade é mais forte. Pode insistir em elasticidades, mas os madeirenses não são elásticos. Não se esticam até ao infinito. Não aceitam perder tudo para que o governo possa mostrar números bonitos em conferências. Não aceitam ser tratados como meros figurantes.

A corda, repito, não é sua. É da Madeira inteira. E quando ela rebentar, o som não será apenas o da falha de uma política: será o da falência de uma geração inteira de governantes que preferiram esconder-se atrás de números a encarar a vida real.

Por isso lhe digo, pela última vez: não nos fale de elasticidades. Fale de sustentabilidade, de casas acessíveis, de ecossistemas protegidos, de cultura viva, de qualidade de vida. Se não o fizer, não será apenas a sua doutrina a falhar. Será a Madeira a perder-se. E nesse dia, Senhor Secretário, nenhum gráfico lhe valerá.

Com toda a franqueza e frontalidade,

Nuno Morna