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Titanic socialista

O Partido Socialista vive, hoje, no limiar da inércia, batendo-se na luta pela sua sobrevivência que transcende a mera disputa eleitoral e toca a essência da sua identidade histórica. Este é o mesmo partido que foi, em tempos, pilar incontornável da democracia liberal em Portugal, artífice da estabilidade política até 2015, herdeiro da epopeia de Mário Soares e guardião da arquitetura institucional saída do 25 de Novembro.

Todavia, eis que agora o próprio partido parece renegar essa memória fundacional, quase como se se envergonhasse da clarividência que permitiu afastar a tentação revolucionária e consolidar um regime pluralista. A recusa em integrar a Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Novembro de 1975 não é apenas um gesto de descortesia histórica: é, em bom rigor, a negação simbólica do legado de Soares, do espírito de moderação que garantiu a plena integração de Portugal na comunidade das democracias ocidentais.

No plano partidário, o outrora colosso político definha em lenta agonia. Da euforia da maioria absoluta de António Costa, passou-se à deriva encenada por Pedro Nuno Santos, esse leão de papel que nunca rugiu, para desembocar na liderança frágil de José Luís Carneiro, a quem não cabe a culpa pelo estado calamitoso em que a máquina socialista se encontra. A sua missão não é liderar, é juntar os destroços e mitigar os prejuízos.

Os socialistas procuraram refúgio nas autárquicas, tentando converter as vitórias locais num sinal de vida nacional. Mas a derrota geral foi mais do que certa, ainda que procurem escamoteá-la com vitórias em “capitais de distrito”. Enquanto isso, falam dos “temas que interessam às pessoas”: habitação, saúde, economia – não fosse o facto de que em todos estes domínios, o legado deixado não é currículo, mas sim cadastro (político).

A controvérsia em torno da lei dos estrangeiros é um exemplo paradigmático desta decadência. Chumbada pelo Tribunal Constitucional na sua primeira versão, foi retificada pelo Governo para disseminar as dúvidas constitucionais existentes. O líder socialista acudiu em uníssono para tentar salvar a face, porque sabe o peso do tema, e sobretudo o peso da responsabilidade do PS.

Diga-se, em abono da verdade, que se o Governo tem por objetivo passar a imagem de que as fronteiras estão controladas, de que a imigração ilegal é combatida e de que existe uma regulação eficaz dos fluxos migratórios, então a própria lei em si é um começo, mas não é suficiente. Os meios e os mecanismos utilizados para garantir, no terreno, a execução do que está escrito no papel tem tanta ou mais importância do que aprovar a respetiva lei. Acontece que já nem isto – o óbvio – o PS consegue dizer.

José Luís Carneiro não ocupa o mais ingrato lugar da política nacional – o de líder da oposição –, porque já nem isso o PS conseguiu ser. É antes uma entidade órfã, herdeira de um passado recente tóxico – o cinismo estratégico de António Costa e a temeridade inócua de Pedro Nuno Santos, que em parelha são os verdadeiros coveiros de um partido que se orgulhava de ser o garante da democracia constitucional.

E, no entanto, persistem nos mesmos erros. Não falta quem, nas fileiras autocelebradas da esquerda intelectual, exija ao Governo um parceiro preferencial – ou o PS, ou o Chega. Mas com que autoridade moral pode o PS reclamar primazia, quando em 2015 rasgou convenções democráticas fundamentais não escritas ao firmar uma solução governativa cujo único desígnio era a perpetuação no poder? Nesse tempo, ridicularizou-se o PSD sem pudor, fosse sob a liderança de Pedro Passos Coelho, fosse sob os comandos de Rui Rio, numa arrogância tão desmedida que António Costa chegou a afirmar que “no dia em que eu precisar dos votos do PSD, o Governo cai”.

Hoje, porém, não há moral, não há crédito político, não há sequer resquício de vergonha que permita ao PS ditar exigências a quem quer que seja. O barco socialista, minado por dentro, já não navega, afunda-se lenta e inexoravelmente, enquanto os marinheiros se entretêm em discursos de ocasião. A história, implacável, registará esta decadência não como acidente fortuito, mas como resultado lógico de anos de soberba, de arrogância e de voluntário desapego às raízes que em alturas de valentia deram grandeza ao Partido Socialista.