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Crónicas

Um Chão para Viver

1. Um Chão para Viver, Não para Especular
[como um Banco de Terrenos em direito de superfície e um Catálogo de “Design” podem devolver a casa aos madeirenses]

Aqui há uns anos, quando a habitação começava a ganhar o peso de tragédia doméstica e colectiva, lembrei-me de pedir a alguns amigos, muito mais sabedores do que eu e com paciência para me aturar, que me dessem a sua opinião. Não porque acreditasse que alguém tem a solução para este país condenado a repetir os mesmos erros com a mesma devoção piedosa, mas porque às vezes é preciso escutar quem viu mais do que nós, mesmo que seja apenas para confirmar que estamos cercados por muros invisíveis. Das respostas deles, daquelas conversas meio soltas, feitas de estatísticas, de recortes de notícias e de histórias, foi nascendo em mim uma ideia um pouco menos vaga, talvez mais lúcida ou, pelo menos, menos ingénua, sobre o tema. A eles, que tiveram a generosidade de me ajudar a ver um pouco mais longe do que a minha própria miopia permitia, vai dedicado este escrito.

Seria bom começarmos a pensar na criação de um Banco de Terrenos em direito de superfície, terrenos que o Governo Regional guarda como quem guarda as gavetas cheias de parafusos sem serventia, terras que ninguém usa, terrenos do Estado que abandonados atrás de muros partidos e decretos de anos, enquanto as casas sobem de preço até ao céu, enquanto os miúdos se encolhem em quartos em casa dos pais, enquanto se parte para fora porque aqui não há onde viver. Não é o Estado construtor nem o Estado senhorio, essa comédia socialista que nunca resolveu nada, é simplesmente dar uso ao que já existe, arrancar da ferrugem um património inútil, transformá-lo em chão vivo, como se tirássemos fotografias esquecidas de álbuns a desfazer-se.

Mas um Banco de Terrenos sozinho não chegaria, porque a Madeira não é feita só de pedra e mar, é feita da teia pegajosa da burocracia, papéis em triplicado, selos, certidões, atestados, assinaturas, cada qual mais lenta que a outra, como se o tempo do cidadão fosse uma peça de xadrez na mão do funcionário. É preciso um Catálogo de “Design”, projectos prontos, casas pré-pensadas, plantas desenhadas para não perder tempo em discussões inúteis. Uma caixa de ferramentas aberta na mesa, onde qualquer um pode escolher o martelo certo e começar.

E além do catálogo, além dos terrenos, uma coisa tão óbvia que chega a ser obscena dizê-la: desburocratizar. Cortar no labirinto de licenças e pareceres. Acabar com o ritual medieval de andar de balcão em balcão. Criar processos simples, transparentes, digitais, rápidos. Uma moratória clara de isenção de taxas e taxinhas, aquelas mordidelas invisíveis que a Região inventou para financiar a sua própria obesidade administrativa. Durante os primeiros anos, enquanto o Banco de Terrenos se instala, enquanto os projectos arrancam, isentar as famílias e os promotores dessas mordidelas. Porque não faz sentido oferecer terrenos e, ao mesmo tempo exigir uma procissão de pagamentos ridículos: taxa de alinhamento, taxa de vistoria, taxa de não sei quê. Taxas que ninguém entende, que só servem para atrasar e irritar.

Não é preciso inventar cidades novas nem rasgar a serra com mais cimento. Bastava preencher os vazios e infraestruturá-los, usar os lotes abandonados, dar densidade onde hoje só há mato e ordenar o que está caótico. Casas pequenas em encostas, blocos de madeira (wood frame) ou pré-fabricados em aço (light steel frame) ou em betão, prédios baixos que se montam em meses e não em anos. Banco de Terrenos e Catálogo de “Design”: uma chave dupla para abrir a mesma porta. A do custo absurdo do solo e a do nó burocrático.

E se, ao mesmo tempo, se impusessem critérios que parecem luxo, mas deviam ser mínimos, eficiência energética, acessibilidade, resiliência ao clima, teríamos casas decentes, seguras, duráveis. Casas que não fossem ruínas anunciadas, nem cofres de dívida para quem nelas vive.

Não se trata de socialismo, não se trata de nacionalizações. É o contrário. O Estado não constrói, não arrisca, não paga cimento. Fornece o chão, os modelos, e tira do caminho os entraves administrativos e financeiros inúteis. O investimento é privado, o risco também. Mas ao menos, desta vez, sem o peso morto de um aparelho que vive de cobrar ao cidadão pela oportunidade de respirar.

Imagino os municípios a serem forçados a mexer, rever PDM’S, projectos prontos a cair-lhes na secretária, sem margem para arbitrariedade. Imagino prazos curtos, decisões rápidas, um licenciamento medido em meses. Imagino, por um instante, que a Região deixava de viver para se sustentar a si própria. Um gesto que talvez devolvesse a ideia de casa a quem já a perdeu ou que nunca a teve.

2. O Peso do Não
[como a recusa distingue o estadista do vendedor de ilusões]

Na política, o verbo que mais se gasta é o sim, repetido até à náusea, oferecido com a ligeireza de quem distribui autocolantes a crianças num desfile. O sim é barato, é rápido, é fácil. O sim não exige nada de quem o pronuncia, apenas a coragem mínima de mexer os lábios e o cálculo frio de somar meia dúzia de votos. O sim acalma multidões, embala a imprensa, faz sorrir corporações, produz aquele falso consenso que dura tanto quanto a espuma de uma onda ao rebentar na praia. E o pior é que o sim dá uma sensação de movimento, como se um país, ou uma região, avançasse de promessa em promessa, quando, na verdade se limita a rodar em círculos, gasto, exausto, condenado a repetir os mesmos erros de sempre.

O não, pelo contrário, é pedra no sapato, é arame farpado, é bofetada. O não, não dá palmadinhas nas costas, não rende manchetes simpáticas, não arranca palmas em jantares partidários. O não é duro, seco, inflexível. Obriga quem o diz a enfrentar o incómodo do silêncio, o peso da desaprovação, a solidão das convicções. Obriga o político a ser adulto, a carregar a cruz de quem sabe que governar não é agradar a todos, não é ser o distribuidor universal de favores, não é viver de um contínuo estado de embriaguez populista. E é por isso que o não é tão raro. Porque exige coragem, e coragem é o que mais falta na política portuguesa e, ainda mais, na madeirense.

Quem não sabe dizer não transforma-se rapidamente num escravo. Escravo das dívidas que acumulou para comprar uns anos de paz. Escravo dos compromissos que assinou sem ler, só porque a fotografia no jornal era boa. Escravo dos favores que distribuiu com a inconsciência de quem lança moedas a pedintes, convencido de que assim se governa. Esse político é um prisioneiro, rodeado pelas paredes que ele próprio construiu com os seus sins fáceis, incapaz de respirar sem pedir autorização às clientelas que alimentou, sem ceder ao próximo grupo organizado que grita mais alto. O não é a muralha que o poderia proteger, o fosso que o poderia separar da mediocridade. Sem ele, fica reduzido a funcionário submisso, a gestor de promessas ocas, a espectro de si.

Dizer não é, numa democracia madura, o gesto mais elementar de respeito. Respeito pela realidade, pelos limites do orçamento, pela inteligência mínima dos cidadãos. Quem só sabe dizer sim trata os eleitores como crianças mimadas, incapazes de ouvir uma recusa, dependentes de um Estado-paizinho que resolve tudo. O não, pelo contrário, trata os cidadãos como adultos, capazes de compreender que nem tudo pode ser feito, que nem tudo pode ser pago, que a política não é uma máquina de imprimir milagres. O sim ilimitado é mentira, é a ilusão de que a vida pode ser perfeita desde que se aumentem os impostos e se fechem os olhos às contas. O não é verdade amarga, mas verdade. É o único antídoto contra a bancarrota, contra o colapso, contra a infantilização permanente.

Na Madeira, esta lição nunca foi aprendida. A autonomia foi confundida com uma conta sem saldo, sempre disponível para financiar obras inúteis, subsídios eternos, festas de ocasião. O não passou a ser encarado como uma ofensa, um insulto, um acto de traição. O governo regional habituou-se a funcionar como um balcão de dádivas, onde cada freguesia exige obras, cada associação pede o seu privilégio, cada corporação reclama a sua fatia. Mas não há autonomia quando não existe a coragem de recusar o impossível. Não há autonomia quando tudo se compra com dinheiro alheio. A autonomia sem o não é apenas dependência mascarada, vassalagem com bandeira hasteada e hino entoado de olhos fechados.

E, no entanto, é precisamente o não que permite construir um sim verdadeiro. Um sim que não é ilusório, que não é narcótico, que não se evapora no dia seguinte. Um sim que significa obra feita, promessa cumprida, realidade transformada. O não é o alicerce, o chão sólido onde se ergue o futuro. Quem foge dele limita-se a levantar castelos de areia, bonitos nas fotografias, mas destinados a desaparecer com a primeira maré.

No fim, é isto: o político que sabe dizer não, não pensa apenas na próxima eleição. Pensa nos próximos dez anos, pensa nos filhos de quem hoje protesta, pensa no futuro em que não estará lá para governar. Esse político é raro, quase inexistente, mas é o único que merece ser chamado estadista. O resto vive de vender ilusões, embrulhadas em papel brilhante, com prazo de validade marcado pelo dia das eleições.