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Reprodução ou criação?

Estive nestes dias a ponderar e a contemplar as noções de individualidade e os seus antónimos (coletividade, conformidade, padronização, uniformidade).

Levaram-me a isso os inúmeros comentários que surgiram nas redes sociais depois de terminada mais uma edição dum dos maiores concursos pianísticos do mundo, dedicado ao grande compositor e pianista polaco Chopin, e organizado quinquenalmente em Varsóvia.

Sobretudo desde a época renascentista, na cultura ocidental começou uma procura geral de algo que distinguisse uma pessoa de outra, algo individual e característico só dessa pessoa, seja isso pela maneira como se veste, porta, fala, ou expressa artisticamente. Depois do anonimato da Idade Média, a identidade e a afirmação dos próprios criadores gradualmente começaram a ultrapassar a sua produção artística, até ao ponto de hoje em dia as criações serem valorizadas mais pelo nome do seu autor do que pela qualidade intrínseca da obra.

Sobretudo a partir do século XX, “ser diferente” passou a ser uma chave de ouro para reconhecimento, fortuna e fama. As expressões artísticas levadas até ao absurdo para insistir na singularidade, irrepetibilidade e exclusividade do produto artístico e do seu criador, com a associada comerciabilidade, proliferaram duma forma exponencial. A individualidade, outrora vista como um conjunto de características únicas, tornou-se agora num artigo comercial, a ser vendida no mercado.

É verdade que a modernidade coloca o indivíduo no centro da sua própria existência, onde cada pessoa se torna responsável pelo seu próprio destino e pela sua própria “construção”. A emancipação do indivíduo está intimamente ligada à noção do individualismo. Ela manifesta-se através da liberdade de escolha e da autorreflexão, e através do consumo de bens e serviços como forma de criar e expressar uma identidade pessoal. No entanto, essa busca pode levar ao individualismo extremo, ao isolamento social e a um foco em objetivos de curto prazo, onde a identidade em si é vista como um produto de consumo.

Surge aqui um conflito entre a aprovação e a singularidade, entre a necessidade de ser aceite pelo grupo e o desejo de ser único. Sobretudo a partir do século passado, este conflito agudiza-se com o crescimento do Estado, da sociedade em massa e das ideologias totalitárias que representam desafios à individualidade.

E cada vez mais surge agora também o conflito entre a aprovação e a singularidade na área das artes, nomeadamente na música. A “aprovação” dum júri num concurso de qualquer instrumento – no caso citado em cima, de piano – depende, conforme a opinião de muitos entendidos, de uma fixação naquilo que é comprovável e demonstrável. E essa fixação é muito típica para a nossa época. A perfeição e a infalibilidade técnica tornam-se num substituto e alternativa à revelação artística. A pobreza de espírito confunde-se com o requinte e a segurança e domínio técnico confundem-se com a maturidade.

Já há bastante tempo – décadas e décadas – que se torna impossível identificar um pianista pelas características específicas da sua sonoridade e qualidade tímbrica. Nos meados do século passado, falando dos pianistas do topo, isso ainda era um facto quase assumido, entre os conhecedores. Pois essas características individuais transmitiam também as qualidades emocionais e artísticas dos seres humanos que as possuíam.

Agora, a impressão é que todos os que chegam às fases finais dum concurso tão exigente e intenso como o em questão têm a capacidade de tocar qualquer música a qualquer velocidade, com o mesmo grau de perfecionismo, desenvoltura, e estabilidade e controlo emocionais, que não deixam margem para desequilíbrios, fraquezas, tropeços… Infelizmente, deste modo, quase não a deixam para espontaneidade, improvisação e criação instantânea. E assim, não obstante todo esse aprumo e assertividade daqueles que são veículos perfeitos de reprodução musical, surge a questão “quo vadis, ars”? Reprodução ou criação?