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Crónicas

A Cidade Prometida Que Nunca Vai Chegar

Vem isto a propósito das eleições autárquicas de ontem e de que desconheço os resultados quando escrevo estas linhas. Por estes dias pus-me a pensar na cidade, na “Nossa Cidade” como tão bem a descreveu o Thornton Wilder, e melhor ainda a encenou o Élvio Camacho nos idos de 2008. Sim, na cidade que começa sempre com uma ideia, mas não dessas ideias arrumadas, com colchetes e esquadros, dessas ideias de gabinete onde os homens desenham maquetes em miniatura para esconder a sua impotência em ponto grande, mas com uma ideia que é mais um delírio, mais uma perturbação do sossego que alguém confunde com génio, mais uma epifania de alguém mal dormido que, de súbito, decide que o mundo tem de ter avenidas onde antes havia vales e tem de ter prédios onde antes havia Laurissilva. E cafés, muitos cafés e muitas esplanadas, onde as pessoas possam fingir que estão vivas, conversar sobre livros que não leram, amores que nunca tiveram, viagens que apenas adiaram.

As cidades nascem do desconforto. Do desconforto de existir, do desconforto de estar só. E por isso erguem-se edifícios como epitáfios, estátuas como súplicas, ruas que não levam a lado nenhum como perguntas sem resposta. Porque o que se pretende com a cidade não é um lugar, é uma lembrança.

Disseram-me, ou talvez tenha sido um sonho, que uma cidade se constrói. Constrói-se. Que verbo optimista. Como se construir fosse um acto de vontade, como se as cidades não se impusessem, como se os bairros não nascessem entre os escombros de decisões alheias, como se a arquitectura não fosse a arte de maquilhar a miséria.

As cidades evoluem, dizem. Evoluem, como se fossem organismos racionais, como se soubessem para onde vão. Mas para onde vai uma cidade que expulsa os seus? Para onde vai uma cidade onde os filhos dos velhos não podem viver senão no subúrbio, e os velhos morrem sozinhos nos andares que já ninguém quer? Evoluir, aqui, é eufemismo para degenerar. A cidade evolui como um corpo que incha com a doença. A cidade evolui como um amor que, em vez de se extinguir, apodrece lentamente.

E, no meio disto, há os que vivem. Os que realmente vivem. Os que acordam às cinco para apanhar o autocarro. Os que não têm tempo para ideias. Os que não sabem o que é gentrificação, mas sentem-na no preço da mercearia. Os que olham para o lugar onde nasceram e não reconhecem nem os cheiros. Os que vivem numa cidade que já não é sua, mas que ainda amam como se fosse. Como se fosse.

E as freguesias. As freguesias como órgãos internos da cidade, como rins e fígados e pulmões e estômagos, cada um com a sua função obscura e vital. As freguesias não são planeadas, são sobrevivência, escorrência da cidade oficial, esgotos da urbanidade limpa que aparece nas brochuras da câmara. As freguesias e os seus bairros crescem como crescem as unhas dos mortos, em silêncio.

A cidade tem a memória dos teus passos, mesmo quando tu já não tens corpo para muito caminhar. E há sempre um arbusto onde se escondiam os beijos. E há sempre um lanche embrulhado em papel. E há sempre uma mulher à janela que sabia tudo sobre todos, e sobre ti também. Mesmo o que tu não sabias ainda.

A cidade não tem vergonha de nada. Esquece os velhos. Esquece os operários. Esquece os nomes das ruas que trocou porque alguém decidiu que um novo nome seria mais funcional, mais neutro, mais europeu. A Rua da Carqueja é agora Rua Doutor Alípio, mas ninguém sabe quem foi o Alípio. E os velhos ainda dizem o nome antigo, como se aquilo ainda os salvasse. Como se as palavras conseguissem trazer de volta a mercearia da Dona Judite ou a tasca do Hilário, que servia copos de quarto de litro como quem benzia.

E há as igrejas. As igrejas como cicatrizes, como colunas verticais de uma fé que já não se professa, mas que ainda se respeita com um aceno de cabeça quando se passa à porta. As igrejas onde se baptizaram meninos que já não crêem em nada, mas que ainda recordam o cheiro do incenso como quem recorda a voz da mãe. Igrejas que ficaram a olhar o crescimento da cidade como um velho cansado a ver os filhos que já não voltam a casa.

E o ruído. O ruído é a língua materna da cidade. O ruído que vem das motas, das buzinas, das televisões, das discussões, dos beijos dados às pressas, dos cães a ladrar, dos passos nas escadas. Das conversas, das inúmeras conversas. Cada som uma história. Cada barulho uma existência. O ruído como melodia dissonante da sobrevivência. Quem não ouve a cidade, não vive nela.

E há as paragens. As de autocarro. Lugares de partida e de regresso. Lugares de espera. E não há dor mais urbana do que esperar numa paragem por alguém que não vem. As cidades são feitas dessas esperas. E desses regressos incompletos. Gente que volta e não encontra nada do que deixou. Gente que nunca saiu e tem vergonha de ter ficado. Gente que passa pelas paragens só para confirmar que ainda há saídas possíveis. Mesmo que não as tomem.

Há as veredas. As veredas como metáfora de tudo. As veredas que são como veias que sobem para lado nenhum. Veredas que se esticam e rangem como ossos cansados. Veredas onde ecoam vozes que já morreram. E os becos. Os becos que são os intestinos da cidade, as suas vísceras retorcidas, onde se escondem os cheiros mais antigos, os gritos abafados, as coisas que ninguém quer ver, mas que fazem parte da carne da cidade. Os becos não aparecem nos mapas turísticos. Os becos são os bastidores. Nos becos mora o que resta depois da maquiagem: os sapatos rotos, os berros abafados, os restos de conversas que ficaram entaladas na garganta.

Os cafés onde ainda se serve pão com manteiga colado ao guardanapo. A tosta mista babada de queijo. Os cafés com máquina de tabaco à porta e televisão ligada na CMTV, com os empregados que tratam os velhos pelo nome próprio, e onde ainda se pode estar calado sem parecer estranho. Os cafés são a resistência passiva da cidade. O café é a trincheira onde se refugiam os que ainda acreditam que há conversa possível. Que o tempo pode ser gasto a olhar pela janela, a ver quem passa, o fumo dos carros, as crianças que voltam da escola a gritar nomes que amanhã já não significam nada.

E as janelas acesas de madrugada como sinais de vida em planetas distantes. Cada janela iluminada às três da manhã é uma pergunta sem resposta. Quem ali vive? Porque não dorme? O que procura no ecrã azul da televisão? Quem espera? A cidade vista de fora parece adormecida, mas há sempre alguém acordado. Sempre alguém que chora, que escreve, que remói. A cidade nunca dorme.

O modo como uma cidade se despede dos seus mortos diz tudo sobre ela. Os funerais são o último momento de cidadania. A última reunião em assembleia. A única onde os mortos ainda contam para alguma coisa. A cidade, nesses momentos, lembra-se que não é eterna. Que também ela morrerá. Que um dia, talvez, tudo isto seja só ruína, como as ruínas que visitamos em cidades alheias, com ar de turistas ignorantes.

Os supermercados, disse-me o meu tio quando ainda conseguia falar, antes do AVC o deixar a olhar fixamente para a parede como se esperasse resposta, os supermercados são o fim da cidade. Não o disse assim, claro, o meu tio não falava por metáforas, dizia só que tinha saudades da padaria do Senhor Torres, onde se vendia fiado e o fiado era uma forma de confiar. Mas o que queria dizer era isto: os supermercados são corredores longos como hospitais, cheios de gente que empurra carrinhos como quem empurra o tédio. Gente que anda sem olhar. Gente que carrega produtos embalados e não sabe porquê. O supermercado não tem cheiro, não tem rosto, não tem alma. É uma espécie de purgatório com caixas registadoras.

O comércio tradicional, esse, ainda respira. Ainda se ouve. Ainda se conhece. Ainda sabe o teu nome mesmo que tu já te tenhas esquecido do teu. Gosto deles. Gosto mesmo. Lojas pequenas, com pó nos cantos e calendários de santos pendurados nas paredes, onde o tempo passa devagar e a conversa vem com o troco. Onde o pão sabe a forno e a infância e a mãe. Onde a luz não é fluorescente, é do sol a bater nos vidros sujos. O comércio tradicional é o último reduto da cidade como casa. Como sítio onde se vive e não apenas onde se compra.

E há o amor. O amor urbano. O amor apressado, envergonhado, feito de mensagens lidas e não respondidas, de beijos trocados entre dois carros estacionados, de mãos dadas na praça, de promessas feitas entre cigarros. O amor na cidade é amor ferido. Mas é amor. Amor que insiste. Amor que luta contra o ruído. Amor que resiste ao trânsito, às rendas, ao medo. Amor que ainda acredita que, no meio disto tudo, pode haver um quarto com luz ao fim da tarde, dois corpos nus que se tocam sem vergonha, uma vida em comum, mesmo que seja a fingir.

E mesmo assim, resistimos. A cidade resiste nos pequenos gestos. Nas velhas que ainda varrem o passeio. Na mulher que leva sopa ao vizinho. No miúdo que ajuda a empurrar o carrinho do bebé por uma calçada impossível. Nas cadeiras à porta em bairros pobres. Nos mercados onde se regateia por dignidade, e não por preço. A cidade não vive dos grandes planos. Vive do que sobra. Do que escapa à regra. Do que ninguém controla.

A cidade é um corpo. Um corpo com pele de pedra, ossos de ferro, sangue de gente. Um corpo doente, quase sempre. Mas vivo. Um corpo que envelhece, que treme, que grita. Um corpo que ainda quer dançar. Que ainda quer cantar. Que ainda se comove com um pôr-do-sol visto do miradouro. Que ainda se irrita com uma árvore cortada. Que ainda se levanta às cinco da manhã para apanhar o autocarro e não morrer de fome.

E tudo começou com uma ideia.

Uma ideia que ninguém teve coragem de esquecer.

Uma ideia que resiste como a última lâmpada acesa no último andar do último prédio de uma cidade que teima em continuar.

Mesmo quando já não devia.

Mesmo quando ninguém pediu.