DNOTICIAS.PT
Crónicas

O Salvador da Pátria

1. A afirmação “o Estado sou eu”, atribuída a Luís XIV, embora não documentada historicamente, epitomiza a era da governança absolutista, quando o poder do estado estava vinculado à figura do rei. Esta concepção de poder do século XVII, apresenta paralelos interessantes — ainda que preocupantes — com a política contemporânea, manifestando-se por meio de tendências autoritárias e centralizadoras.

A presente era de agregação de poder não se manifesta apenas sob a forma da autocracia, mas também de maneiras mais subtis e, por vezes, até insidiosas. Actualmente, há líderes políticos que adoptam estratégias de consolidação de poder, de certa forma reminiscentes das estratégias usadas no absolutismo, embora não proclamem serem abertamente o Estado. Isso manifesta-se na erosão das instituições democráticas, na menorização de vozes opositoras e no controlo sobre os “média”, ameaçando colectivamente as bases da governança democrática e participativa.

Nas democracias, a ascensão de líderes populistas que afirmam falar diretamente pelo “povo” ou pela “nação” apresenta um desafio adicional à separação de poderes. São frequentemente as lideranças, que apelando a uma base de apoio forte, procuram formas de enfraquecer as instituições que limitam o seu poder em nome de uma pretensa vontade popular.

2. A dialética entre os “predestinados” e os “salvíficos” oferece uma perspetiva interessante sobre o mundo político. Os “predestinados” na política tentam envolver-se num certo misticismo, que tenta provar que certas pessoas estão destinadas ao poder e transportam consigo uma aura de inevitabilidade. Tenta vender-se uma dimensão histórica, cultural ou mesmo ideológica, nas quais a jornada para o poder é um caminho já determinado não com base no mérito ou escolha, mas como lote do destino.

Por outro lado, os “salvíficos” são aqueles que trazem a salvação. Oferecem soluções que prometem resgatar-nos de perigos iminentes, mesmo que estes não existam. A retórica salvífica baseia-se em promessas que apelam à esperança no desejo de mudança.

A interacção destas duas noções, manifesta a complexidade do poder político e da liderança. Por um lado, a ideia de predestinação é capaz de apoiar estruturas de poder existentes legitimando o “status quo”, argumentando que certas pessoas ou grupos são “naturalmente” predestinados para a liderança. Esta perspetiva pode limitar a moldura do que deveria ser a participação democrática, pode concentrar o poder nas mãos de uma elite alegadamente predestinada e pode reduzir a agência política individual e colectiva.

No final, a promessa de salvação gera uma dependência perigosa de figuras, que, uma vez no poder, acabam por dele abusar. Os anais estão repletos de exemplos de líderes outrora considerados “salvadores” que se tornaram autocratas, usando a retórica da salvação para justificar a erosão das liberdades civis e a concentração de poder.

A crítica destas dinâmicas não é académica, mas, na sua verdadeira profundidade, prática, uma vez que reflete sobre como os cidadãos de qualquer estado percebem e se relacionam com a sua liderança política. Uma reflexão crítica muito importante relativamente aos conceitos de predestinação e salvação na política é devida para compreender as forças que moldam as nossas sociedades. Questionar tais noções pode criar espaço para alternativas mais democráticas e inclusivas de governação: aquela em que o poder não é exercido por destino ou promessa divina, mas pelo consentimento e envolvimento activo dos governados.

3. A incompetência enreda-se numa complexa teia de falhas, falta de habilidade e numa enorme relutância em reconhecer ou corrigir as deficiências. Tanto é um sintoma quanto uma causa de problemas muito profundos, um círculo vicioso que, uma vez estabelecido, requer esforço significativo e vontade para ser quebrado. No palco da política, onde as consequências são amplificadas e os erros são ampliados, a luta contra a incompetência é contínua, uma batalha constante pela eficácia, responsabilidade e, finalmente, pela confiança pública.

A incompetência não é mais do que uma desconexão fundamental entre a habilidade e a tarefa; é como tentar encaixar um quadrado numa abertura circular, com a promessa de que, mais cedo ou mais tarde, ele se ajustará. Manifesta-se mediante promessas não cumpridas, projetos incompletos e frequentemente uma superabundância de desculpas criativas. Sendo sempre um passo atrás nas expectativas e dois passos à frente nas responsabilidades, a incompetência é mestre da improvisação — embora por necessidade e não por escolha. É o desacordo entre o que é necessário e o que é oferecido, entre o potencial e a realização. A incompetência é filha do “achismo”.

A incompetência não é meramente a falta de competência; é uma força ativa e presente que molda resultados, muitas vezes redefinindo objetivos, sem intenção de concretizá-los.

Politizada, a incompetência pode ser tanto uma arma quanto um obstáculo. Para alguns, é uma arma habilmente manejada para desviar a atenção, baixar expectativas e, paradoxalmente, manter o poder. A baixa eficácia torna-se uma estratégia, um meio de sobrevivência num ambiente onde a responsabilidade pode ser tão fluida quanto as promessas eleitorais. Para outros, é uma barreira intransponível, o tipo de marca que desafia, independentemente de quantas vitórias se acumulem contra ela.

A ironia da incompetência na política é que, apesar da sua natureza aparentemente óbvia, pode ser incrivelmente difícil de erradicar. Ela esconde-se atrás de cortinas de retórica, disfarça-se com um manto de autoridade e alimenta-se da apatia e do desengajamento. Lutar contra a incompetência exige mais do que apenas identificá-la, requer uma vontade colectiva de exigir mais e melhor, de recusar o estado das coisas e de procurar activamente a competência como um valor central e não apenas como um acidente feliz.

4. Presentemente, o culto da personalidade tornou-se um fenómeno complexo e multifacetado que ultrapassa as fronteiras de um sistema político concreto, refletindo uma tendência global na qual os líderes são elevados a níveis quase míticos pelos seus seguidores. Há a exaltação imoderada de um líder político não apenas como um líder eficaz ou carismático, mas como alguém cujas qualidades roçam as de um super-humano, indispensável para o bem e a prosperidade de sucesso. Esta glorificação vai muito além do respeito ou admiração ordinários e cruza para o lado da veneração e idolatria, onde o líder é representado como a encarnação dos ideais e das aspirações.

Uma característica que realmente distinguiu o culto moderno da personalidade é a forma intensiva e estratégica como opera através dos “media” e redes sociais para moldar a imagem do líder. Uma narrativa cuidadosamente elaborada é utilizada para retratá-los como heróis, salvadores da pátria ou figuras paternais benevolentes cuja visão é indispensável para o futuro. Isto solidifica ainda mais a representação via uma publicidade omnipresente, que vai desde, mas não se limitando a, discursos públicos, aparições nos meios de comunicação e presenças constantes nas plataformas digitais, onde a imagem do líder é cuidadosamente gerida para realçar as suas qualidades excepcionais e conquistas.

O silenciamento das críticas e a marginalização das vozes dissidentes são primordiais para assegurar que a imagem do líder é inatacável. Isto é frequentemente acompanhado por uma moldura de qualquer oposição como traidora ou inimiga de todos, racionalizando acções contra críticos e fortalecendo a percepção de que apenas o grande líder pode proteger-nos de inimigos internos e externos.

O culto da personalidade também assume a forma da personalização do poder e centralização da autoridade. As políticas e sucessos do governo são diretamente atribuídos ao líder, enquanto falhas ou desafios são muitas vezes atribuídos a opositores, ou a circunstâncias externas. Isto reforça não só a ideia de que o líder é infalível, mas também que a sua liderança é imprescindível para a continuação do progresso e estabilidade. Desafia os princípios da democracia e da governação transparente, promovendo uma visão de liderança que se enraíza numa atitude onde a adulação é inquestionável e a centralização uma realidade. Estas características — manipulação da imprensa, supressão da dissidência, personalização do poder e fusão com uma espécie de nacionalismo bacoco — contribuem para a cultura política onde o questionamento e o debate são colocados de lado, favorecendo-se a lealdade cega. Isto coloca em risco não apenas os mecanismos de responsabilização e equilíbrio de poder, mas também abre caminho ao autoritarismo, se não for devidamente controlado e contestado.

5. Se entenderam que o que escrevi era merecedor da vossa atenção, não podem ter deixado de notar que tem tudo a ver com o nosso modelo político. Alguém duvida que Albuquerque se veja como um predestinado? Que os que o rodeiam e seguem cegamente o veem como um salvador? Que os laivos de culto da personalidade são mais do que muitos? Que a incompetência grassa por todo o lado? Que o “achismo” reina? Que o mérito não é compensado, nem valorizado?

6. É isto que vivemos na Madeira. Uma espécie de “o Estado sou eu”, que do alto de um assoberbamento e de uma condescendência preguiçosa, pejado de incompetências e apoiado em “achismos”, pretende passar a ideia de que faz o favor de nos governar. E por oposição tem de pouco, de muito pouco. A maioria dos partidos alinham na política do menos, na politiquice barata e sem objectivos. Some-se a isto uma comunicação social contemplativa e, na maior parte dos casos, acrítica, e temos um todo gelatinoso e sem sal.