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A ignorância do todo ou o conhecimento de uma parte

Abu-I-Fida Ismail ibn Ali, foi um geógrafo, historiador, Príncipe e Governador de Hama que viveu entre 1273 e 1331 que na sua adolescência se dedicou ao estudo do Corão e das ciências, mas que entrado na juventude preferiu as expedições militares, principalmente contra os Cruzados.

No prefácio da sua obra “Tagwim-al-Buldan” (“Um esboço dos Países” - 1321 D.C.) escreveu:

“What cannot totally be known, ought not to be totally neglected; for the knowledge of a part is better than the ignorance of the whole” que pode traduzir como: “o que não pode ser totalmente conhecido não deve ser totalmente negligenciado; pois o conhecimento de uma parte é melhor do que a ignorância do todo”.

Neste livro, Abu-I-Fida Ismail ibn Ali escreve a primeira explicação conhecida do paradoxo da circum-navegação, referindo que uma pessoa que viajasse para Oeste quando voltasse ao ponto de partida contaria menos 1 dia e se a viagem fosse para Leste o efeito seria inverso, isto é, contaria mais um dia; este fenómeno foi confirmado por Fernão de Magalhães/Sebastião Elcano cerca de dois séculos mais tarde.

A propósito de navegação (tantas vezes andamos em círculos, quase a circum-navegar os problemas do dia-a-dia, à procura de um conhecimento que permita resolvê-los sem grande prejuízo), num destes últimos dias na ressaca das tempestades dos últimos meses, dei por mim a sonhar com um mar borrascoso, de vaga grande e sem direcção definida, tal como o vento, que se fazia fresco.

Vela grande no terceiro rizo, um trapinho de genoa, um pouquinho de “vela de porão”, e lá ia eu conforme podia, caçando ou folgando consoante a vontade do vento e do mar, tentando manter um rumo fixo, previamente calculado.

Nesse mar borrascoso cruzei-me com um navio grande cheio de gente que, mesmo sentindo a tempestade à volta, estava confortavelmente instalada, tanto quanto o balanço permitia.

A páginas tantas ouve-se (nos sonhos temos essa capacidade, de ouvir à distância como se lá estivéssemos) algum burburinho a bordo do navio grande.

Apareceram no mar alguns náufragos tentando manter-se à tona de água agarrados a umas tábuas de flutuação aparecidas não se sabe bem como, aumentando de número conforme aumentava o número de náufragos.

“Essas tábuas não prestam” diziam alguns, do alto do conforto que o navio grande proporcionava. “São porosas e, mais cedo ou mais tarde vão afundar”, diziam.

Entretanto a sotavento, alguns outros ocupantes do barco grande, colhiam algumas tábuas, daquelas porosas, que por ali passavam – a sotavento é mais fácil, principalmente quando é a barlavento que se distraem os outros – sem nada dizer a quantos gritavam conselhos aos náufragos.

Levantou-se mais, o mar, e algumas das tábuas de flutuação não aguentaram, levando consigo aqueles que em desespero e sem alternativa se lhes tinham agarrado. “Eu bem dizia” exclamavam alguns dos que tinham aconselhado os pobres náufragos, “afundaram-se”.

Por uma daquelas casualidades férteis nos sonhos, o fundo do mar tremeu fazendo com que se elevasse, formando um recife precisamente na rota do navio grande, que resultou num embate violento, num grande rombo e respectivo afundamento. Os tais “mais esclarecidos” procuraram com afã uma qualquer tábua de flutuação, porosa que fosse, mas já não havia nenhuma, pois os outros, os que as tinham recolhido a sotavento, tinham feito uma jangada, furtando-se ao naufrágio certo.

Começou então a chover e acordei com uma enorme bátega de água a cair no meu telhado e por ali me deixei ficar por uns momentos, sem saber o que teria acontecido a toda aquela gente que lutava desesperadamente por uma tábua onde pudessem flutuar, e a bendizer poder saber quando “caçar” ou “folgar” uma vela quando o mar e o vento pedem.

Para seguir um rumo traçado muitas vezes é necessário uma mareação mais cerrada, mais firme, mas se demasiado cerrada o barco pode adornar (e mesmo virar), tornando-se necessário mudar de bordo para manter o rumo ou, se se folga em demasia corremos o risco de ir numa direcção não desejada, apesar do barco aparentar mais estável.

Concluindo, é sempre melhor saber, ter algum conhecimento por pouco que seja, como se pode mudar de mareação ou como fazer uma jangada a sotavento, do que ignorar (ou fazer que se ignora deixando a soberba suplantar a humildade) tudo o que se passa à volta e não reconhecer que é sempre melhor algum conhecimento que pode ser salvador do que a ignorância dos problemas mesmo que essa ignorância seja fruto da soberba que se tem instalado nas sociedades contemporâneas.

Se Abu-I-Fida Ismail ibn Ali em 1321 disse o que disse, julgo que nós no Século XXI, com o conhecimento na ponta de um clique também deveríamos ter essa capacidade.

Mas os resultados que vamos observando na ressaca das borrascas dos últimos meses não auspiciam grande vontade de aprofundar conhecimentos que sejam transformadores da ignorância alimentada pela soberba.