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Inflação e o Canal do Suez

Esta guerrilha financiada pelo Irão levou a que o canal por onde passa cerca de 15% de todo o comércio mundial fosse impossível de navegar

Esta semana estava a ouvir um intelectual que defendia a atividade dos Houthi ao bloquear o canal do Suez, criticando fortemente a intervenção da coligação ocidental, por entender que os Houthi estavam apenas a atuar contra o imperialismo ocidental.

Não vou explicar aos leitores do DN o porquê que atacar navios civis detidos por dinamarqueses, com bandeira da Libéria, tripulação indiana e que transportam óleo de coco para os mercados europeus não constitui qualquer tipo de prática anti-imperialista, mas sim atos terroristas que, apenas por manifesta incapacidade dos executantes, não resultaram em perda de vida civil.

Também não vou ser condescendente ao ponto de esclarecer que os Houthi não são decentes, uma vez que me parece óbvio que um grupo que tomou de assalto um país, instaurou um regime que permite – e depende de – escravatura e usa soldados crianças não é um grupo de gente decente.

O que quero chamar à atenção é que esta guerrilha financiada pelo Irão levou a que o canal por onde passa cerca de 15% de todo o comércio mundial (e cerca de 30% do comércio contentorizado) fosse impossível de navegar, com todos os principais armadores a abandonar a rota – exceto os armadores chineses, tema esse que, pela sua relevância, deverá ter a sua própria crónica.

O efeito imediato deste bloqueio não pode ser menosprezado. Sem acesso ao canal, os navios têm de alterar a sua rota e navegar ao longo de toda a costa de África. Usando como referência um navio que parta de Singapura em direção ao norte europeu, o bloqueio do canal implica um aumento do tempo de viagem em cerca de 35%, representando um aumento brutal do consumo de combustível.

Simultaneamente, o risco de ataques futuros implica um gasto maior com seguros de navios e mercadorias, dificulta atrair tripulações e impossibilita qualquer escala intermédia que os armadores tenham planeado antes do seu destino final.

Apesar dos pontos acima serem muito relevantes, o fundamental é que cada navio passa a fazer menos viagens por ano, levando a uma redução brutal da oferta de transporte contentorizado e a um aumento da procura por navios para suprir estas necessidades adicionais de transporte – levando a um aumento generalizado dos fretes em todos os mercados.

Os resultados destas disrupções já se sentem. Os fretes da Ásia para a Europa e América do Norte aumentaram 200% e 75%, respetivamente (de acordo com Flexport), com a Lloyd’s List a estimar que seja necessário aumentar a oferta de transporte de contentores com mais 1.7M de TEU.

A longo prazo, caso estas disrupções não sejam esbatidas, o próprio regime de produção e cadeias logísticas globalizadas poderá estar em causa, levando a que muitos dos esforços das últimas décadas sejam desperdiçados.

Que não haja enganos, estes ataques são ataques ao bem-estar e liberdade globais que terão impactos ao longo das próximas décadas.

Mas daqui a seis meses lá teremos os mesmos intelectuais, que agora defendem os Houthi, a nos explicar que a recente inflação é o resultado da ganância corporativa e não das disrupções nas cadeias logísticas globais.

Por lapso publicámos na edição de ontem um artigo de David Pedra Costa referente a Dezembro. Publicamos, neste edição, o de Janeiro, pedindo desculpa ao autor e aos leitores.