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A música e a longevidade (ou não)

Não havendo à partida qualquer dúvida de que a prática de música tem os seus benefícios na saúde e em vários aspetos do funcionamento mental e físico do ser humano, seria interessante ver se existe também alguma ligação entre essa prática e a longevidade dos praticantes.

São vários os estudos, com diversos graus de fiabilidade científica, que abordam esse relacionamento. Um deles, dedicado à música não clássica, dividiu os músicos em três grupos: um, com blues, jazz, country e gospel (espirituais), outro, com rhythm & blues, pop, folk e música de mundo, e ainda um terceiro com a música mais recente, com rock, eletrónica (tecno, disco, funk), punk, metal, rap e hip-hop. Enquanto o primeiro grupo manteve a expectativa de duração da vida comparável com a média, o segundo grupo já ficou por baixo da média e no terceiro grupo essa discrepância ainda aumentou. Efetivamente, o suicídio, homicídio, uso de estupefacientes e álcool, e mortes acidentais – mas também a associação com gangues e as vidas vividas à margem da lei – neste grupo estão de tal modo evidentes que surgiu o mito urbano do “clube dos 27 anos”, sendo essa a marca em que muitos dos músicos deste grupo terminaram a sua vida duma maneira inesperada e largamente prematura.

Um estudo de 2015, cientificamente conduzido, observou que, entre os 15 mil músicos falecidos, os praticantes da música do terceiro grupo morreram até 25 anos antes duma média normal. Enquanto o homicídio figurava em cerca de 6% destas mortes, essa percentagem era mais de metade para os músicos hip-hop e rap.

A situação é significativamente diferente para os praticantes da música clássica. Dedicando-se durante toda a vida ao aperfeiçoamento da execução de obras compostas, em grande parte, muitas décadas e séculos atrás, eles vivem as suas vidas duma maneira bastante diferente. A dedicação e a disciplina necessárias para o bom desempenho implicam umas escolhas no regime da vida que têm as suas repercussões na saúde e no bem-estar geral.

Os benefícios terapêuticos da música clássica (redução de stress, aprimoramento da função cognitiva, bem-estar emocional) podem-se estender para além da atuação pública, e o empenho intelectual e emocional pode contribuir para a resiliência cognitiva e acuidade mental, influenciando as escolhas do modo de vida (dieta, exercício e gestão do stress) e a própria longevidade. Deve ser igualmente considerado o aspeto social positivo da partilha da experiência de fazer música, que pode representar um fator de proteção contra o isolamento, o que muitas vezes está nas raízes dos problemas de saúde ligados ao envelhecimento.

No entanto, esta tendência parece existir também entre os compositores de música clássica, sendo que uma pesquisa que abordou cerca de 400 compositores desde o século XVI registou que cerca de dois terços viveram mais tempo do que era a média da primeira parte do século XX e metade deles viveram mais tempo do que a média calculada para o presente (73 anos mundialmente e 77 nos EUA).

Um estudo conduzido na Holanda revelou que os artistas e escritores neerlandeses na transição entre os séculos XVIII e XIX tinham a média de duração da vida igual às classes privilegiadas, superando assim as expectativas para as suas próprias classes (média/média baixa), apesar das condições da vida urbana da altura (epidemias, condições sanitárias). Isso sugere que, não obstante as condições reais das suas vidas, a prática de uma arte contribuiu para o aumento da sua longevidade. Outra possível inferência é que os benefícios da atividade criativa podem ter sido tão eficazes como são hoje em dia, uma vez que um estudo de 2002 (baseando-se, curiosamente, nas medições de imunoglobulina na saliva) confirmou que a prática musical fortalece o sistema imunitário. Apesar de não haver uma conclusão definitiva sobre a natureza da ligação, não se pode negar que os nossos pensamentos e emoções influenciam a nossa saúde e que são mesmo poucas as atividades que estimulam a mente e o coração (emocional) mais do que a criatividade artística.