Crónicas

A letra do banco

Da letra não se podia fugir, era o banco ou a casa e o futuro e, por isso, pouco sobrava

A letra do banco para acabar as obras antes de se casar com o meu pai era uma vergonha que a minha mãe carregou durante anos e mesmo depois de a ter pago, mesmo depois de ter passado a depositante com capital e juros para levantar a cada seis meses.

Os meus pais estavam a chegar aos 30 anos e a casa de dois quartos e cozinha continuava sem telhado quando, nem sei bem como, meteram uma letra no banco para começar uma vida nova naquele bocado de terra que o meu avô deu à minha mãe. Os dois sofriam desse mal português, essa espécie de maldição que nos persegue desde os tempos do Afonso Henriques: não tinham dinheiro.

O meu pai era pedreiro, a minha mãe bordava e a única vantagem era o pedaço de terra na curva do caminho dado em vida e com uma escritura assinada no notário. O resto era com eles e a saída foi engolir a vergonha e pedir dinheiro emprestado ao banco. Para a minha mãe foi difícil, tão difícil que, 20 anos depois, ainda se sentia a humilhação na voz.

Da letra não se podia fugir, era o banco ou a casa e o futuro e, por isso, pouco sobrava. As telhas, as mesmas que ainda lá estão, foram compradas com o dinheiro do bordado e o que faltou veio do exercício de poupança extrema a que se dedicou. E ela contava, com mágoa e o orgulho feminino ferido, que por causa disso tinha ido levar injeções à Caixa durante uma semana e sempre com a mesma saia, a mesma blusa e os mesmos sapatos.

A mobília de quarto ficou incompleta – a minha mãe nunca esqueceu a cómoda e o espelho que teve de deixar na loja - e na cozinha havia um mesa de metro, quatro bancos e um armário feito com a madeira de caixas. A casa de banho só tivemos depois, mas disso tem apenas uma vaga ideia, a de me lavar inteira dentro de uma tina de ferro.

As minhas memórias mais antigas incluem o quintal com uma latada de vinha americana e as janelas pintadas de azul forte, mas eu sou de um tempo diferente, onde a falta de dinheiro não chegava para roubar os sonhos ou os planos dos meus pais. A revolução deu-lhes isso, a venda da casa do meu bisavô ajudou a endireitar as contas.

Os pais aprenderam a viver nesse mundo novo, souberam fintar a inflação e orientar os dois mil contos que tinham no banco. A cada seis meses, a minha mãe fazia fila no Banco Pinto Sottomayor para decidir de juntava os juros ao capital ou se levantava para pagar despesas. E havia muitas.

Nós estávamos a crescer, tínhamos de ser alimentados, cuidados, vestidos e penteados, havia livros e cadernos para comprar e existia um mundo diferente, a que não se podia virar a cara. Aos poucos, pelos degraus da entrada, subiu um frigorífico, depois uma televisão a preto e branco, mais tarde uma iogurteira até ao meu pai decidir que merecíamos ter uma televisão a cores e uma máquina de lavar roupa.

Sei que isto é o essencial numa casa, no fim dos anos 70, princípio dos anos 80 era subir na vida, era fugir daquele começo complicado com a corda ao pescoço para pagar a letra ao banco. A minha mãe podia ganhar o tempo que passava no tanque e, à noite, via a telenovela a cores. E dormia sossegada por estar tudo pago.