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O valor das vozes do querer comum

A sondagem que o Expresso publicou na passada semana é “um extrato de um país profundamente insatisfeito” e representa um murro no estomago do Governo e espero que sirva também como despertador pois os números são avassaladores e a confiança dos portugueses está numa situação preocupante.

A esmagadora maioria dos portugueses está insatisfeita com a vida do país, sob os mais diversos critérios. Na educação, na justiça, na habitação, na saúde, no ambiente, a sondagem mostra um país que não gosta do que vê ao espelho. Embora sejam quase em uníssono, as queixas dos portugueses tendem a ser ainda mais audíveis entre quem se sente menos confortável financeiramente e, quando o assunto é a qualidade dos serviços públicos, entre quem vive em regiões fora dos eixos de Lisboa e Porto, a situação é muito pior.

A sondagem confirma também a percepção de que se vive um tempo de descrédito das instituições, com a política à cabeça.

O Presidente da República aparece com um nível de confiança elevado: 69%. Mas essa é uma função marcada pelo pendor da proximidade que Marcelo lhe deu. Os outros lugares altos da política, distantes da população em geral, aparecem todos mal cotados.

E também aqui, como na leitura sobre o estado do país as percepções parecem estar, se não partidarizadas pelo menos influenciadas pela ideia que se tem sobre quem governa. O que é mais um mau sinal para o Governo de António Costa.

Influência, novos mecanismos de participação e mais reformas: os portugueses querem ser mais vezes, e de mais formas, serem chamados a participar nas decisões políticas do país. É o que se retira de vários indicadores analisados por esta sondagem do Expresso.

Neste sentido, as duas ideias com maior aprovação são a de criar novos mecanismos para os cidadãos participarem politicamente (85%) e fazer mais referendos para decidir assuntos importantes (82%), questões que já abordei neste jornal em tempos e que recentemente foram levantados a propósito da eutanásia, por exemplo.

Na verdade, todos as referências sobre participação politica da sondagem parecem apontar para uma pessoalização e dessacralização da politica. No fundo confirmando a desconfiança em relação aos partidos, Governo e Parlamento.

Pois, é sobre este mesmo tema que vos quero falar hoje. É um velho tema que nos últimos anos tenho aprofundado e que me é caro, na política bem como na vida académica.

Trata-se de ressignificar o conceito de cuidado que se esgotou no espaço tradicional da vida privada, pensando em conjunto cuidado e justiça, para o transformar num ingrediente essencial na configuração de um novo paradigma para a política, no quadro da ideia de democratização política.

De facto, constitui um verdadeiro exercício de democracia este tipo de “audição pública” por permitir dar voz às pessoas concretas, de forma estruturada e pacífica. Ao longo deste processo, pessoas e colectivos cultivam a cidadania, através da vivência democrática, quer como meta a alcançar, quer como método a desenvolver.

Como meta, a democracia é interiorizada como uma referência desejável com um quadro axiológico próprio, exercitando competências de reflexão crítica sobre a realidade quotidiana, discernindo-a, avaliando-a e sugerindo alternativas para a sua superação.

Como método a democracia é experimentada através de uma dinâmica colaborativa, em que todos os protagonistas têm possibilidades de aperfeiçoar competências de comunicação (de leitura, de escrita, de expressão oral e de escrita), de participação (na preparação, tomada e execução de decisões colectivas) e de representação (na escolha dos representantes).

Por isso, como afirmei anteriormente, “neste século a principal tarefa da humanidade deve escrever-se num esforço intenso e prático de definição e de aplicação de uma verdadeira qualidade de vida.

Ao procurar a melhoria sustentável da qualidade de vida, a mais alta prioridade deve ser concedida à satisfação das necessidades básicas mínimas, para a sobrevivência da população. Esta prioridade não pode ser negociável.

É fundamental uma quantidade mínima antes que a qualidade de vida possa ter significado. Mas para além de um certo limite, a quantidade procurada em excesso pode tornar-se insustentável e conduzir à deteriorização da qualidade de vida.

Há muito elementos da qualidade de vida. Baseiam-se na função garantida e tranquila da saúde e da alimentação adequada e da habitação, de um ambiente estável e saudável, da equidade, da igualdade entre os sexos, da participação nas responsabilidades e na vida de todos os dias, da dignidade e da segurança. Cada um destes elementos é importante em si, mas a falta de realização nem que seja de um só pode minar o sentido colectivo da qualidade de vida.

No momento em que estamos, um momento de crise profunda de todos os processos de transição, temos que encarar simultaneamente dois desafios não resolvidos que são extremamente urgentes e a que temos de fazer face simultaneamente: livrar os seres humanos da pobreza e travar a degradação do ambiente”.

Quando relia estas ideias por mim escritas no passado veio à minha memória essa obra memorável de Václav Havel: “O poder dos sem poder” que li em tempos e que constitui um autêntico grito de liberdade nos anos 70 e que imediatamente se converteu num manifesto de dissidência na Checoslováquia, Polónia e em outros países comunistas.

Mas se a leitura deste livro resulta hoje de tanta actualidade é porque este ensaio é também uma reflexão sobre a necessidade do homem viver na verdade, de seguir o que chama a sua consciência e levantar a sua voz contra a mentira que o poder absoluto nos faz prisioneiros como afirmei num dos meus últimos artigos.

Sem dúvida de que é na comparação entre influência ideal e influência real que os inquiridos nesta sondagem nos dizem que a população deveria ter muito mais influência do que tem, bem como nas sugestões de reformas políticas. A alta importância deste trabalho/sondagem é inquestionável e não resisto para terminar, de citar de novo Václav Havel. “Uma palavra verdadeira, inclusivamente pronunciada por um só homem, é mais poderosa, em certas circunstâncias do que um exército todo. A palavra ilumina, desperta, liberta. A palavra tem também um poder. E esse é o poder dos intelectuais”.