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A mentira como norma

Nunca se mentiu tanto como nos dias que correm. Nem de modo tão desenvergonhado, sistemático e constante.

Isso pouco importa, dir-nos-ão talvez: a mentira é tão velha como o mundo ou, pelo menos, quanto o homem; a mentira política nasceu com a própria cidade, tal como a História sobremaneira nos ensina; enfim e sem recuar muito no tempo, dir-nos-ão que a lavagem ao cérebro durante a Primeira Guerra Mundial e a mentira eleitoral da época que se lhe seguiu atingiram níveis e estabeleceram recordes bem difíceis de ultrapassar.

Tudo isto é verdade, não haja dúvida. Ou quase. Certo é que o homem se define pela palavra acarretando esta a possibilidade da mentira, e que – o mentir muito mais do que o riso, é apanágio do homem. Igualmente certo é ser a memória política intemporal, e as regras e a técnica do que outrora se designava por “demagogia” e actualmente por “propaganda” terem sido sistematizadas e codificadas há milhares de anos: e os produtos de tais técnicas, a propaganda dos impérios esquecidos e desfeitos em poeira, fazem-se ouvir ainda hoje, para memória de muitos.

É incontestável que o homem sempre mentiu. A si próprio mentiu. E aos outros. Mentiu por prazer – o prazer de exercer essa espantosa faculdade de “dizer o que não é” e de criar, pela palavra, um mundo que tem nele o único responsável e autor. Mentiu também por defesa: a mentira é uma arma. A arma preferida do inferior e do fraco que, enganando o adversário, se afirma e dele se vinga.

Como podemos ler no romance “Todos os Homens são Mentirosos”, agora reeditado em Portugal, de Alberto Manguel (Buenos Aires; 1948), logo no início do livro, a verdade é um “conceito perigoso”. E de certo paradeiro. As contradições das narrativas decorrem mais do regime traiçoeiro de funcionamento da memória, e da linguagem que a veicula, do que de qualquer intencionalidade.

Por isso, de modo geral, não existe a obrigação moral de dizer a verdade a toda a gente. E ninguém tem o direito de exigi-la a nós. Aqueles por quem se estima, aos pares ou aos superiores é devida a verdade. Em contrapartida, a recusa da verdade implica falta de estima, falta de respeito.

No entanto, nunca se mentiu tanto… Como efeito dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, rios de mentiras são vertidas sobre o mundo. A palavra escrita, o jornal, a rádio, a televisão… todo o progresso técnico está ao serviço da mentira. O homem moderno – e é de novo o homem totalitário que temos em mente – banha-se na mentira, respira a mentira; está exposto à mentira a todo o instante da sua vida.

As regras da moral social, a moral real que se exprima nos nossos costumes e que governa, de facto, as nossas acções, são bem mais flexíveis do que a moral filosófica. São regras que condenam genericamente a mentira. Toda a gente sabe que é “feio” mentir mas tal condenação está longe de ser absoluta. A interdição está longe de ser total. Há casos em que a mentira é tolerada, permitida e até recomendada.

Tudo isto a propósito do “deplorável” espectáculo que os portugueses seguiram em directo na televisão, com as audições da CPI no Parlamento português. De facto, foi uma semana confrangedora para todos nós que pensávamos que vivíamos em Democracia. As cenas que presenciamos são mais dignas de um episódio de novela mexicana do que civilidade devida a titulares de cargos políticos. Uma teia de mentiras e de falsidades que minaram por completo a credibilidade do Governo.

Das acusações de “aldrabão” a um ministro ainda em funções até à revelação de uma actuação no mínimo opaca do SIS, tudo é “deplorável” e sem memória em democracia.

Temos de concluir que o Ministério das infra-estruturas é, neste momento um caso de polícia e eventualmente um manicómio. A ideia de que um ministro pode fazer política depois destas cenas sórdidas é só para gente no mínimo distraída.

O cidadão comum que assistiu ao desfilar destas acusações, contradições e mentiras, só pode estar com os olhos esbugalhados.

Marcelo Rebelo de Sousa, perante tudo isto, fez uma síntese feliz: “É uma ilusão achar que se pode ter poder sem ter responsabilidade”. Nestes últimos dias o PR reiterou o que disse anteriormente e assegura estar “a acompanhar a situação porque, sublinhou ser preciso proteger o prestígio das instituições”.

Podemos concluir, o Governo está mais frágil, o ministro desacreditou-se, a relação institucional com o Presidente está comprometida e o País ficou mais pobre com tanta irresponsabilidade ou incompetência.

De facto, a política sem ética é uma vergonha.