Crónicas

A banca na esquina da minha rua

Esta semana, numa das minhas caminhadas habituais pelo meu bairro dei de caras com uma equipa de mudanças, mesmo na esquina da minha rua, numa azáfama que não poderia passar despercebida. Uma carrinha grande ia carregando caixas e caixotes, sacos e saquinhos enquanto dois idosos se mantinham inertes a olhar lá para dentro, não percebi se por pena ou apenas a olhar para o vazio. Olhei naturalmente à minha volta, para perceber se seria de algum inquilino que se prestava para abandonar um qualquer apartamento ou alguma loja que estaria prestes a fechar. Foi mesmo a segunda. Nem queria acreditar quando vi a mercearia com papel nos vidros e um espaço, que antigamente se apinhava de frutas e legumes, agora tristemente nu. Era lá que encontrava as ervas aromáticas com cheiro digno desse nome ( as das grandes superfícies não cheiram a nada ), alhos verdadeiros, tomates grandes e sumarentos e as malaguetas mais saborosas. É verdade que não comprava lá tudo porque era geralmente mais caro do que noutros sítios mas quando queria encontrar algo que fizesse a diferença já sabia onde o encontrar. Ao lado, paredes meias com o surpreendente encerramento um novo espaço viu a luz do dia, assim como a vida, em que uns morrem e outros nascem. Uma empanadaria argentina, com um letreiro cá fora que anuncia as promoções da abertura escrito em espanhol. É mesmo assim a vida de um bairro, onde uns vão dando lugar a outros e o decurso natural dos negócios se vai desenrolando. Sem que tenha zero de preconceito com conceitos estrangeiros, até os acho aliás muito bem vindos, não deixo de olhar com uma certa melancolia para o vazio que antes era ocupado por caixotes empilhados na rua, com morangos, ameixas, cerejas, nêsperas e tudo o que era da época sempre com um ar aprumado e fresco. É pena que se vão perdendo algumas referências de qualidade que nos vão empurrando para os hipermercados e outras mega lojas que até podem ter tudo e mais um par de botas mas nunca terão aquela magia e muito menos os cheiros e os sabores intensos do que é verdadeiro e que é da terra.

O ator canadiano Ryan Reynolds, famoso pelos seus filmes em Hollywood adquiriu o Wrexham A.F.C. um clube da quinta divisão inglesa de futebol e não podia ter ficado mais fascinado com o desporto rei. “Eu fiquei obcecado. Fiquei obcecado não apenas com o desporto do futebol, mas também com a comunidade à sua volta, a cultura, o que significa para tantas pessoas, é algo mesmo de vida ou morte”, disse o ator. “É o tipo de narrativa mais apaixonada que alguma vez vi na vida”. Disse aliás há uns dias e depois de um jogo decisivo, decidido nos últimos minutos, que felizmente não descobriu esta paixão mais cedo, porque seguramente iria viver menos tempo, tal é emoção e a adrenalina que sente durante os 90 minutos. Não há duvida que o futebol tem esta capacidade quase única de mexer connosco, de tirar do sério o mais pachorrento e pacato dos cidadãos e de levar à loucura pessoas de diferentes gerações. Eu confesso que o vivo da mesma forma e um resultado negativo ou positivo do meu Benfica mexe com os meus dias e com o meu estado de espirito. É uma forma de estar que não se explica, um amor por vezes irracional que nos leva da tristeza à alegria em instantes. Estes últimos jogos têm sido por isso um pesadelo que nos retirou o sonho de irmos mais longe na Liga dos Campeões e nos devolveu o receio de perder um campeonato que parecia ganho. Veremos o que nos traz este final de época e se uma equipa que tem sido brilhante mas que se encontra visivelmente cansada e fustigada emocionalmente conseguirá manter os 4 pontos de vantagem para se sagrar campeã. Seja como for, não há duvida que a incerteza veio para ficar e haverá mais unhas roídas do que seria de prever.

A guerra na Ucrânia parece não ter fim. Mas não é só por lá que os nossos olhares devem estar atentos. Myanmar, Sudão e vários outros países vão dando mostras da instabilidade que se apoderou do Mundo e que parece ter vindo para ficar. Se países há, onde o conflito é o prato do dia de há muitos anos a esta parte, outros vêem-se a braços com uma nova realidade. Não imagino o que seja viver em permanente sobressalto, acordar a meio da noite com o barulho de mísseis, ver casas, prédios e cidades completamente devastadas, vizinhos e familiares mortos e tudo o que era dado por adquirido desaparecer num ápice. Não há sacana mais rasteira e abjecta que a arma que tira vidas atrás de vidas. É lá ao fundo, não chega aqui e por isso já nos habituámos às noticias. Mas não o devemos esquecer nem tão pouco apagar. Podia ser connosco, podia ser aqui. Não há nada acima do valor da vida humana, do respeito pelos outros e não há bem que devamos valorizar mais, a seguir à saúde que não seja a segurança. Somos uns sortudos por poder andar na rua tranquilos e serenos, preocupados com os nossos próprios problemas sem o receio de cair uma bomba ou de nos atacarem a casa. Que não o deixemos cair no esquecimento e que as pessoas responsáveis olhem bem para o que estão a fazer, para as crianças mortas, os idosos com um final de vida penoso e os que trabalhavam para construir alguma coisa verem tudo desaparecer. É triste demais.