Crónicas

Leitores da moda

A fotografia e a moda são, na sua condição de fenómenos sócio-culturais, ambos inseparáveis da modernidade industrial e das novas conceções espácio-temporais que marcam o século XIX.

O tempo acelerado, progressivamente vertiginoso, a superação de barreiras e de distâncias que os novos meios de transporte trouxeram, foram acompanhados de imagens técnicas que se vão democratizando e construindo uma perceção visual do mundo sob o formato do fragmento e da miniatura que, em grande medida, o tornava colecionável.

Walter Benjamin, porventura o autor mais fundamental quando o que está em jogo é pensar através  da fotografia, escreveu ainda sobre a moda enquanto fenómeno da modernidade –  de forma fragmentária, é certo, como também lhe é característico – na obra Das Passagen-Werk (na edição de 2019 em português, intitulada, As Passagens de Paris). No livro Antropologia da Moda, numa edição da Documenta/Sistema Solar de 2021, a antropóloga portuguesa Filomena Silvano, interessada pelo fenómeno enquanto meio de estruturação identitária, refere que Benjamin via na moda uma aproximação à antecipação do futuro (à semelhança do que o mesmo reconheceu na relação entre a fotografia moderna e a noção de instante, tão bem explorada pelo historiador brasileiro Mauricio Lissovsky ou ainda por Eduardo Cadava).

Silvano reproduz ainda uma passagem de Benjamin onde este vinca que a maior satisfação que a moda nos traz é a de sermos contemporâneos do resto do mundo, passando para considerações do filósofo Giorgio de Agamben sobre a articulação moda e a contemporaneidade, enquanto um tempo desajustado em relação ao presente, um tempo limítrofe entre o que ainda não é e o que já não é.

Apesar da fotografia datar da década de trinta do século XIX – aproximando-se hoje, também ela, vertiginosamente do seu segundo centenário – ao submeter uma (qualquer) fotografia de Oitocentos a um olhar mais desprevenido ou menos conhecedor da técnica e da sua história, é frequente operar-se um certo efeito amalgamador de época. Ou seja, corremos o risco de condensar num mesmo imaginário temporal imagens de épocas e com características técnicas e foto-sensíveis muito distintas entre si, remetidas assim para a categoria de imagem histórica. Na maior parte das vezes, excluímos toda uma panóplia diversa de imagens (e épocas precisas) em detrimento de outras.

A nível pessoal e primário, tendo a confundir o século XIX com a Belle Époque. Tal deve-se, porventura, ao papel que o formato carte-de-visite assumiu (para mim) na popularização de uma moda daquele século em detrimento de outras. De tal modo, penso hoje, que na infância, mascarar-me no carnaval a mulher desta época que muitos situam entre a década de setenta e o início da Primeira Guerra Mundial, era um disfarce, dizia então, de “dama antiga”, e algo a que remetia mais para a fotografia (antiga) do que para a pintura, (por exemplo) ao nível do imaginário.

Que construção identitária será essa que privilegia o efeito anacrónico da moda? Que efeito de distorção é esse, na relação que assumimos com o nosso tempo, que se estabelece ora no anacronismo do disfarce, ora no repescar para hoje de elementos outros? E que tanto são os da moda de outrora, como do démodé de outrora (e que hoje são aquilo que designamos de retro, de vintage, etc., e por essa via, na moda).

Boas questões, porventura, para os leitores da moda.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.