Crónicas

Mauricio Lissovsky: um legado maior do que o mundo

Na passada sexta-feira, acordei com a triste notícia da morte de Mauricio Lissovsky, professor da Escola da Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, historiador visual com um trabalho de fôlego no estudo da fotografia e da teoria da imagem, cujo fulgor filosófico para o exercício da história, para a antevisão de novas montagens do pensamento sobre as imagens, é imensurável. Ao escrever estas linhas, tenho a consciência que me faltam as palavras para homenagear, mesmo que de forma singela, este professor, mestre e amigo que tive a sorte de ter como orientador de estudos, e que me acolheu calorosa e generosamente nos seus seminários, grupos de leitura e encontros com outros entretanto (também meus) amigos, no Rio de Janeiro, desde 2014. Por essa razão, resta-me reproduzir a biografia “longa” que me enviou aquando da sua participação enquanto orador principal na Conferência Internacional Fotografia e História, que teve lugar aqui no Funchal, no passado mês de dezembro.

“Historiador, redator e roteirista. Doutor em Comunicação, professor do programa de pós-graduação em Comunicação da UFRJ. Bolsista em Produtividade Científica do CNPQ, Nível 2. Em 2007, foi contemplado com uma bolsa de pesquisa da British Academy e realizou o seu pós-doutoramento no Birkbeck College, em Londres. Na ECO/UFRJ foi Coordenador da Curso de Rádio e TV (2007-2010) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (2011-2012). Foi professor convidado de cursos de pós-gradução em fotografia e imagem das Universidades Cândido Mendes (2010-2017) e Positivo (2012-2018). É membro do Advisory Board do Centre for Iberian and Latin-American Visual Studies da Universidade de Londres e consultor do Programa de MFA em Roteiro da CAPES/Fulbright,. Em 2015, foi pesquisador visitante no Program of Latin-American Studies da Universidade de Princeton. Colaborador frequente do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, como pesquisador, consultor e autor. Entre seus livros publicados, estão Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr (1988), Colunas da Educação (1994), Só Existe um Rio (2008), A Máquina de Esperar (2009), Refúgio do Olhar (2013) e Pausas do Destino (2014). Tem larga experiência como roteirista de vídeo, cinema e TV, tendo sido coordenador do Iser-Vídeo e da TV Zero (da qual foi fundador).

Na televisão, foi coordenador do programa Cidadania, na TV Educativa (1996) e coordenador de criação e redator final da série Globo Ciência (2000-2003). Entre seus roteiros para o cinema, estão o longa-metragem de ficção Seja o que Deus quiser (dir: Murilo Sales, 2002) e Nise, o coração da loucura (Roberto Berliner, 2015), e os documentários A Pessoa é para o que nasce (dir: Roberto Berliner, 2004), Eliezer Baptista, engenheiro do Brasil (dir: Victor Lopes, 2010) e Serra Pelada (dir: Victor Lopes, 2013). Colaborou com Jair de Souza em diversos projetos como a Sala dos Heróis, no Museu do Futebol e a exposição A Imagem do Brasil no tempo da Segunda Guerra, no Centro Cultural da Justiça Eleitoral (2009), tendo participada da equipe de criação do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. É membro do Núcleo Criativo da Urca Filmes, desde 2017.

Professor Visitante na Universidade Federal de Pernambuco, em 2019 e consultor de desenvolvimento de programas de pós-graduação nas Universidades Federal do Pará.”

Na Madeira, Lissovsky fez duas comunicações. Uma delas foi sobre o percurso de um dos primeiros daguerreotipistas a estabelecer-se no Rio de Janeiro - Diogo Luis Cipriano, nascido em 1820 na Madeira – demostrando, através de uma rigorosa e precisa pesquisa de fontes periódicas, a forma como em finais do século XIX o retrato fotográfico se impõe no contexto da capital do Brasil Imperial enquanto prática social e comercial àquela anteriormente em voga, a pintura de miniaturas. Na segunda comunicação que fez, pareceu-me que Lissovsky juntou vários aspetos daquilo que sempre se me figurou como um pensamento próprio muito original – tanto mais, enquanto leitor atento de Walter Benjamin e o seu próprio conceito de “origem” –, denso para não dizer encantatório, sobre Fotografia, Memória e História. Um pensamento raro, mas que nunca pretendeu se impor como escola. Um pensamento que alegre e entusiasticamente nos convidava a imaginar, a reposicionar o olhar, a explorar os impercetíveis e “infinitos mundos” que o próprio continha, como bem referia Isabel Stein, (colega e amiga de doutoramento cujo percurso Lissovsky acompanhava com muita amizade desde a licenciatura), acrescentando que, por isso mesmo, Mauricio nos deixa um legado maior do que o mundo. Os ecos desses encontros são múltiplos, tecendo uma rede de imagens e afetos, tecendo com muito humor e ternura um inconformismo em relação às formas feitas sobre as imagens, conseguindo mostrar-nos modulações novas e até então insuspeitas.

Ou como singularmente expresso pelo Grupo de Pesquisa Imagem, Tecnologia e Subjetividade da Universidade de Brasília: "Ele nos inspirou, especialmente no jeito de olhar para os sonhos de futuro, no passado e no presente; na maneira de perceber as profecias das entrelinhas. Por onde passou, Lissovsky seguirá vivendo, pulsante e intensamente, em direção a desdobramentos improváveis, que ainda poderão ter sido. Talvez não exista outra maneira de viver para sempre senão essa”.

E talvez essa vitalidade nos sirva de consolo, apesar da imensa tristeza que a sua perda representa para aqueles que o cruzaram pelo caminho trilhando de forma comparsa atos de pensamento. Até sempre, Mauricio.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s