Crónicas

‘Talvez Assim Seja’ pela última vez

A forma como se manipulou e brincou com o trabalho das outras pessoas é inaceitável e não estou disponível para deixar passar em branco

«(…) na verdade, não basta possuir o que é preciso dizer, mas torna-se também forçoso expor o assunto de forma conveniente; e isto contribui em muito para mostrar de que tipo é o discurso.»

Aristóteles (2018).

Retórica. Livro III. Imprensa Nacional, p.213

Imagine que, no âmbito da sua atividade, contraiu uma doença e que, conforme decretado pela autoridade de saúde da sua área de residência, ficou confinada à sua residência enquanto persistissem sintomas da doença. Ou suponha que teve um problema cardíaco de monta que o obrigou a ausentar-se por um período mais longo. Ou que foi pai e fez uso da licença de parentalidade a que a sua criança tem direito. Ou que assumiu compromissos cívicos para os quais precisa de se ausentar, de quando em vez, da sua secretária.

Agora imagine também que, no final do ano, uma entidade decide avaliar o seu desempenho e determina que as ausências justificadas são tratadas como se não o fossem e que são o único critério de avaliação.

Foi isto que aconteceu esta semana.

Foi feita uma parangona neste Diário sobre as faltas dos deputados e deputadas à Assembleia Legislativa Regional. Eu sou uma das visadas como sendo uma das mais faltosas, com nove registos, que se deveram ao cumprimento escrupuloso do confinamento obrigatório decretado pelo Governo Regional por Covid-19 (prolongado até aos 10 dias por persistência de sintomas, o que significou duas semanas de ausência), a uma crise respiratória e ao cumprimento dos meus compromissos com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Câmara de Lobos. Em momento algum, por parte do Diário, me foi solicitado qualquer esclarecimento. Outras pessoas visadas têm outras razões semelhantes e também não foram contactadas pelo que «as partes com interesses atendíveis» não tiveram direito a um princípio básico que deve ser inviolável: o direito a serem ouvidas.

«Na política do quotidiano, as nossas palavras e os nossos gestos,

ou mesmo a ausência destes, têm uma grande importância.»

Timothy Snyder (2017). Sobre a Tirania – vinte lições do séc. XX. Relógio D’Água, p.28.

A «balda» ao direito fundamental das pessoas visadas a serem ouvidas não é aceitável, não pode dar lugar a hesitações e é absolutamente insultuosa. A forma como se manipulou e brincou com o trabalho das outras pessoas é inaceitável e não estou disponível para deixar passar em branco.

O Diário não teve disponibilidade para contactar as pessoas visadas para as ouvir e, no meu caso particular, não teve disponibilidade para ouvir uma das suas colaboradoras. Desde janeiro de 2020 que iniciei, a título gracioso, esta colaboração com o Diário de Notícias. Foram 71 textos, com periodicidade quinzenal.

Este é o último, e é provavelmente o único em que não excedo o número de carateres, bem pelo contrário.

Grata a quem me acompanhou.

Termino esta colaboração como comecei, com Clarice Lispector:

«D. Frozina, chega de maniganças. Fique com o seu Leite de Rosas e “io no me vado”. (É assim que se diz em italiano quando uma pessoa quer ir embora?).»

«As maniganças de Dona Frozina» in Todos os Contos. Relógio D’Água, p. 415.