Crónicas

Uma visão sinótica do percurso migratório da família Fernandes

Neste espaço, no final do ano que passou, escrevi alguns textos a partir de imagens fotográficas provenientes dos “baús” da família Fernandes, a qual, sendo originária da Fajã dos Padres / Ribeira Brava, migrará sobretudo nas décadas de 1950 e 1960 para Niterói, Brasil (mas também antes e ao longo desse período, para Caracas, na Venezuela, e Boston, nos Estados Unidos da América). Obtive algumas reações a essas publicações, quer de leitores curiosos que teceram breves comentários ao conteúdo dos textos, quer de outros mais implicados pelas narrativas, ou seja, que através delas descobriram parentes no Brasil.

Algumas das imagens que então reproduzi e muitas outras desse “arquivo” de família que, no âmbito do trabalho de campo subjacente à própria pesquisa não foram divulgadas, estão agora publicadas numa plataforma digital que coordeno dedicada à temática da fotografia vernacular, com principal incidência no contexto português: www.foto-sintese.pt. A grande maioria dessas imagens chegou às minhas mãos graças à preciosa mediação de Márcia Fernandes, nascida (já) em Niterói em 1961 (o irmão, de 1958, nasce ainda em solo madeirense), filha de Eugénia e Marcelo Fernandes, de algum modo os principais protagonistas da saga migratória que enquadrava as fotografias que se perfilaram nestas páginas durante algumas semanas. Conheci Márcia Fernandes em outubro de 2015 no Rio de Janeiro, no âmbito de uma pesquisa de doutoramento sobre fotografia afeta ao fenómeno migratório português para o Brasil. Márcia é formada em Museologia pela Unirio e, talvez por isso, revelou uma curiosidade e uma capacidade analítica e crítica perante o seu próprio arquivo de família, que se tornaram essenciais a esta colaboração. Encontrámo-nos duas vezes em Botafogo, onde me mostrou, portanto, as imagens da sua família de origem madeirense (repito-me) das décadas de 1950 e 1960, altura em que esta migra, na sua grande maioria e em várias vagas, para a Venezuela, Boston e, sobretudo, para Niterói (repito-me, de novo). A estes contactos iniciais seguiu-se um encontro em que também estava presente a sua mãe, Eugénia (relembro), na casa de família em Niterói, a 26 de dezembro de 2015. Desde então, temos mantido contacto e aprofundado a pesquisa das imagens e narrativas familiares, tendo Márcia mantido-se como interlocutora desse investigação em particular sobre a sua família, a qual tenho apresentado em conferências, livros de autor e, mais recentemente, nesta série de textos. O seu contributo permitiu-me alargar o “corpus” de imagens em análise, apurar/corrigir informações sobre imagens específicas, e trazer agora a público esta série fotográfica em ambiente digital, não já maioritariamente baseada nas imagens que serviram de “meios de comunicação” entre Portugal e o Brasil, mas também de muitas das que se afirmam hoje como meros fragmentos e “mementos” de uma narrativa familiar circunscrita às décadas de 1950 e 1960, e se integram, mais amplamente, no fenómeno migratório madeirense daquele período e no retrato do quotidiano rural/agrícola da ilha.

Sobre a diferença fundamental entre publicar parte (ou mesmo que fosse a totalidade) das imagens numa tese ou num jornal (por si só, meios muito diferentes) em relação à sua publicação num site concebido como ferramenta para enquadrar e classificar fotografias desta natureza (familiar, “amadora”, banal, etc.), realçamos, por um lado, a visão sinótica que ali se exerce, e por outro, a representatividade (algo silenciosa) das fricções inerentes à mostra dos retalhos que compõem o que algo falsamente designamos de “arquivos” fotográficos de família, (os quais frequentemente mais não são do que um acúmulo confuso de imagens-objetos). Ao exercitar a palavra e a (suposta) memória a partir deles, esta é sempre moldada à aleatória incidência visual de alguns eventos e momentos pouco importantes (e portanto, ultra-representados), e à ausência de tantos outros que nos marcam, quer como membros de uma dada família, quer como sujeitos em plena construção identitária. Mais poderia ser dito sobre tais atritos, mas tal constituíria todo um outro exercício de reflexão sobre o álbum (ou o arquivo, a gaveta, a caixa, o caos…) de família que aqui não faz (pelo menos por agora) sentido.

Em suma, é porventura com a mostra desta seleção alargada de imagens digitalizadas a partir dos baús da família Fernandes que se encerra esta colaboração (pela qual muito agradeço a Márcia e a Dona Eugénia), a qual, no momento em que escrevo é ainda um trabalho em progresso para as próximas semanas, um trabalho de revisão das imagens, sua composição em série e passível acrescento de outras ou de novas informações entretanto “desengavetadas”.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.