Crónicas

O bom, o mau e o marquês

Dentro daquelas paredes grassa um silêncio sinistro, não pelos crimes cometidos, mas pelas vidas que lentamente se esfumam

Enquanto a eutanásia aguarda por nova morte às mãos da Constituição, somos recordados da misteriosa indefinição política sobre o tema. Em 2017, António Costa confessava que não tinha uma posição pessoal fechada sobre a introdução da eutanásia em Portugal. Em 2018, Costa recusava intrometer-se no debate que decorria na Assembleia da República. Em 2020, o primeiro-ministro deixou escapar que a eutanásia não deveria ser criminalizada. E em 2022, candidatou-se às eleições sem uma única linha no programa eleitoral sobre o assunto. Com tanta indefinição sobre o tema, custava assim tanto ouvir os portugueses sobre a eutanásia?

O bom: Projeto Trégua

Enquanto avançamos pela porta do Estabelecimento Prisional do Funchal, abate-se sobre nós a rudez da clausura e, por consequência, revela-se a periclitância da liberdade. Imagino que seja assim em qualquer prisão. Dos que entram para cumprir pena até aos que ali trabalham, há, de forma mais ou menos passageira, uma visão partilhada de como a catividade nos oprime e anula. Dentro daquelas paredes grassa um silêncio sinistro, não pelos crimes cometidos, mas pelas vidas que lentamente se esfumam à espera de uma segunda oportunidade. Para alguns dos reclusos, essa oportunidade chegou com o projeto Trégua e com a ideia de colocar a criação artística ao serviço da reinserção social e profissional. Foi assim que pelo estabelecimento prisional passou a estilista Patrícia Pinto, seguida pela ilustradora Rosa La Peligrosa, pelo serigrafista Pascal Errante, entre outros. Foi também assim que nasceram sacos de pano, t-shirts, crachás e blocos de notas. Todos feitos à mão por reclusos e todos com etiqueta a condizer. Sob a direção da Catarina Claro e da Cristiana de Sousa, o Trégua relembra-nos como a prisão é um lugar de passagem, que não define por quem lá passa, mas que deve ser catalisador para o regresso à liberdade. Essa ambivalência do estabelecimento prisional, que tem tanto de punição como de reparação, resume-me num grande mural, pintado pelos reclusos no pátio interior, onde todos podem ler: “Nós não somos os nossos erros.” A frase, escrita por quem não tem liberdade, deveria levar ao derrube de preconceitos e recordar-nos de que os erros do passado não são estigmas vitalícios.

O mau: Imposto sobre Lucros Extraordinários

À esquerda, o lucro indigna. É uma indignação estrutural pois tem raízes no desprezo por um sistema económico em que o Estado não ocupou todo o espaço da iniciativa privada. Então, perante a impossibilidade objetiva de nacionalizar a grande maioria dos setores de atividade, o Estado organizou-se para maximizar a receita fiscal. O mais recente capítulo do infindável manual de saque fiscal é um imposto sobre os lucros extraordinários de algumas empresas. As perguntas avultam. A partir de que montante é o lucro considerado extraordinário? Se há um lucro extraordinário, haverá também um ordinário? Se os lucros inesperados merecem ser taxados, haverá um desconto fiscal para os prejuízos que não se esperam? O Governo, que tinha recusado o imposto há uns meses, foi lesto a compor o ramalhete fiscal. Primeiro passo, o nome da nova taxa: contribuição de solidariedade temporária. Não soa a imposto e, ainda por cima, é por uma boa causa. Segundo passo, a comparação com o resto da Europa. Reino Unido, Bélgica, Espanha, Itália e Grécia já aplicam uma taxa semelhante. Se lá fora funciona, porque não cá? Pode ser que ninguém se lembre que Portugal tem a terceira taxa de imposto sobre as empresas mais alta da OCDE. Terceiro e último passo, invocar o 25 de Abril. A mãe de todas as justificações. Foi isso que fez o secretário de estado dos Assuntos Fiscais quando justificou o novo imposto com a necessidade de cumprir Abril. Poderia ainda ter dito: “Camaradas, hoje taxamos os lucros extraordinários, mas um dia conseguiremos proibí-los!”. Ao menos assim não restavam dúvidas.

O marquês: António Costa

Pomposamente sentado, de perna cruzada, insuflado de vaidade – eis o Primeiro-Ministro de Portugal. A fotografia de António Costa na capa da Visão, prefácio de entrevista sintomática, lembra a imagem mais conhecida do Marquês de Pombal. Na pintura, o Marquês, ministro impiedoso de D. José I, surge autoritário, quase messiânico, a apontar para o Tejo. Também Costa quis apresentar-se assim. Ufano e todo-poderoso. Longínquos vão os dias em que nos prometia que a maioria absoluta não significaria poder absoluto. Menos de um ano após a eleição, a negociação deu lugar à intransigência, o diálogo cedeu perante a arrogância e a transparência foi devorada pela impunidade. Refastelado na sua maioria absoluta, Costa convenceu-se que tudo lhe é permitido. Os insultos grosseiros aos deputados da Iniciativa Liberal, os excessos de linguagem em relação ao Presidente da Câmara de Lisboa, a repetida desqualificação da comunicação social. É indisfarçável a soberba de um primeiro-ministro que tudo quer e, pelos vistos, tudo pode. A prepotência até permitiu que Costa recuperasse, na entrevista, uma expressão do proscrito Sócrates. “Habituem-se!”, vociferou Costa aos partidos da oposição. A mesma expressão proferida por António Vitorino na noite da vitória absoluta de José Sócrates e durante anos associada à ferocidade da governação socialista. Dezassete anos depois, a governação impune, hostil e truculenta regressou. A António Costa só lhe falta inscrever-se num curso de filosofia em Paris.