Falares tribais e leituras em voz alta para grupos

Hoje escrevo para os leitores anónimos de leituras em voz alta, em grupos e espaços médio-grandes, com e sem aparelhagem de som. Não sei se os leitores já sabiam que o dia 1 de fevereiro é o “Dia mundial da leitura em voz alta” da EuRead, a qual nos vem dizer que mais de 73 milhões de europeus são limitados a ler em voz alta e que é preciso treinar esta capacidade. Na 3.ª e 4.ª classe tive a sorte de me treinar a ler a história de Robinson Crusoe à luz da candeia para a minha família que não dispensava cada episódio semanal do Amigo do Povo.

Vivemos em tempo de informação multifacetada, de muita comunicação, dizem, mas talvez não tanto de compreensão do que se fala, lê, anuncia e escreve. Os que trabalham com mensagens orais de locução, por rádio, TV, salas de cultura e tertúlias, mediadas por diversas máquinas e ambientes ruidosos e cheios de ecos cruzados nem sempre se apercebem que não são ouvidos com clareza e menos ainda compreendidos por deficiências de quem lê ou fala. Serão mais problemas de emissor, de recetor ou de meios? É um prazer ouvir, desejar entender e entender bem, e uma frustração quando a clareza deixa a desejar. Convém ter presente que muitos dos que se culturalizam são já idosos e alguns com limitações de audição; e que os novos dedilham mais que lêem bem para os ouvintes. Nem nos parece que as publicidades enganosas de máquinas auditivas ajudem muito os idosos. Os que vão experimentando dizem que podem aumentar o problema. A diferença está na boa pronúncia das palavras até à última sílaba e o cuidado em destacar as palavras e cada som de forma correta. Falta treino de dicção, termo quase em desuso, em muitas escolas na leitura de sílabas e sons bem articulados em voz alta para o grupo todo com provas de receção e compreensão. Seria fundamental haver aulas de fonética e dicção do português. Recordo como na aprendizagem do inglês e francês os professores insistiam nos alfabéticos fonéticos e nos exames em que o estudante lia um texto desconhecido do professor o qual dava a nota de acordo com o que compreendesse. Num curso de fonética na universidade de Londres incluía-se o ditado com escrita em alfabeto fonético. Também insistiam nalgum dos falares modelo (the British accent da BBC; le parler parisien). Será que em português há algum falar modelo? Penso que os que nunca saíram das periferias têm mais dificuldade em se aperceber do seu falar diferente do português standard.

O uso das redes não ajuda muito a melhorar o que a escola e a família não dão; nas redes formam-se cada vez mais tribos linguísticas, de corruptelas e calão tribal. Vivemos nas modas de falares secretos e cochichos. Será que a falta de dicção na fala e na leitura vão transformar a comunicação em babel incompreensível? Ler, falar declamar em voz alta para os outros não é o mesmo que ler para si ou falar para a pessoa ao lado. Articular e pronunciar de forma clara, correta, bem modulada, precisa de ser aprendido. Aquele que fala com boa dicção não cansa os ouvintes, torna-se compreensível e persuade com clareza. Isso só se consegue com treino metódico e corrigido. No número dos que precisam de melhorar a sua leitura estão os que lêem nas igrejas em que a leitura declamada tem de ser modelar. Não basta o micro e os altifalantes. Tanto mais que a acústica de muitas igrejas modernas não ajuda nada. Também não ajuda se a pessoa não entende o que lê, não liga a mente com o significado das palavras, não respeita o ritmo, não faz as pausas para respirar bem; pior se lê com pressa e ansiedade de chegar ao fim, como alguns locutores. Ler bem já explica o sentido e pede atenção ao ouvinte para ouvir com prazer. De contrário desliga a atenção.

Afinal, “leitura em voz alta” não é qualquer maneira de ler; é ler, compreender e fazer entender a grupos em espaços médios e grandes; por leitores jovens e adultos treinados na dicção e declamação.

Aires Gameiro