A tia, a última
Durante anos as memórias da infância estiveram à distância de uma viagem de autocarro, no 12
Cresci entre as casas das minhas tias e a minha, ali na curva e, quando penso na infância, penso em tudo, nas casas e nas tias. Às vezes lembro-me da varanda da tia Alice onde via passar carros nos domingos à tarde e, em certos dias, quando me sinto a envelhecer, percebo a falta que me faz o carinho da tia Teresa e os chocolates dentro da gaveta do armário do quarto da televisão.
Durante anos as memórias da infância estiveram à distância de uma viagem de autocarro no 12. As tias estavam lá, no lugar de sempre, no Laranjal, felizes por me ver e cheias daquelas atenções que nos fazem sentir seres únicos e especiais. Lembro-me de como era bom e de como fiz menos vezes do que devia, mas era nova e tinha a ideia de que as teria para sempre.
Não me ocorreu que o passar dos anos corria contra nós, nem que chegaria o momento em que me encontro agora. As tias foram-se, uma atrás da outra até ser apenas a tia Conceição, a quem a velhice roubou a memória. São agora raros os momentos em que me reconhece e, na maior parte do tempo, sou uma estranha para a mulher que me viu no hospital no dia em que nasci.
Sou às vezes a mulher das limpezas, uma senhora de visita e, quando lhe grito ao ouvido que sou a sobrinha, a Marta, olha-me desconfiada e não se deixa convencer. Os dias bons são quando lhe nasce um sorriso assim que me vê, quando reclama um beijinho e me dá a mão e volta a ser, ainda que por breves instantes, a tia que me levou a primeira vez ao Porto Santo e a almoçar num restaurante.
Temos fotografias do dia, um dos mais felizes dos meus 11 anos. Sei que fomos à Fonte da Areia, que andámos de táxi e lembro-me de ter ido molhar os pés no mar e como a minha tia se ria de tudo, com uma alegria que encheu a viagem e a tornou única. Tão única que cada vez que me meto no barco para o Porto Santo a primeira imagem que surge é a lembrança desse dia de Agosto de 1982.
De mim enfiada numa saia cor-de-rosa e a minha tia, com 50 anos, a levar-me pela mão no cais para a aventura que nos uniu tanto e para sempre. Tanto que, um dia, quando as memórias de infância ainda era um lugar onde podia ir de autocarro, a minha tia Conceição me ter feito um pedido estranho. Um pedido, que era um desejo e foi dito mais ou menos assim: “eu quero que sejas a última a morrer, a última de todos”.