Crónicas

O “novo normal”, o COVID e o Voldemort

Imprensa e dirigentes políticos e sociais, praticam, de um modo geral, uma política de indução ao medo. Pelo medo vivemos. Nestes tempos, nada acontece a não ser o vírus

1. Disco: há discos que me passam ao lado. Algumas vezes, nem é porque eu não saiba que andam por aí. Aconteceu isso com “Desalmadamente”, de Lena d’Água. Ouvi na rádio uma ou outra música, de modo descomprometido, e pensei que me chegava. Por motivos que não vêm ao caso, acabei por ouvir o disco todo. Gostei muito. É um excelente “come-back”.

2. Livro: Com a queda do Império Soviético, Fukuyama decretou o fim da história. A vitória da democracia liberal era total e absoluta. Até que um dia Vladimir Putin chegou ao poder na Rússia e voltou a querer fazer desta uma potência imperial. Recuperou o criador do fascismo cristão, Ivan Ilyn, desenterrou a Eurásia e iniciou o seu combate sem tréguas à democracia, tal qual a conhecemos. Os maiores partidos da extrema-direita europeia são financiados pela Rússia. O Brexit teve mão russa bem como a eleição de Trump. Neste trabalho vigoroso e implacável de história contemporânea, “O Caminho para o Fim da Liberdade”, Timothy Snyder vai além das parangonas e expõe a verdadeira natureza das ameaças à democracia.

3. Não gosto mesmo nada das expressões que se vão usando por aí e que, para dar ânimo, falam de um “novo normal”. Apelam para que façamos, de tudo isto, uma “oportunidade”. Não tenho idade para novos normais. Andei quase 60 anos a construir o meu normal e a última coisa que quero, agora, é ter de viver com um novo. E oportunidades já tive as que tinha de ter. Se o destino, ou Deus, ou eu, me derem mais uma oportunidade, temo que esta seja desperdiçada, pois já não espero nada de nada. Tão pouco sou pessoa dada a arrependimentos para que sinta que precise de fazer, o que quer que seja, outra vez.

4. A previsão do PIB para o 2.º semestre deste ano anuncia um trambolhão de -16,15%, em termos homólogos (comparação com o ano anterior). Com isto, não andaremos longe de, numa previsão optimista e seguindo o Banco de Portugal, considerar que o nosso PIB poderá ficar, no final do ano, pelos -13,1%.

Não há memória de queda desta grandeza. Com isto, não é preciso ser bruxo para prever o que aí vem: falências, desemprego, violência doméstica, divórcios, declínio na saúde mental, alcoolismo, drogas, suicídio, emigração, abandono, criminalidade, sem-abrigo, miséria, fome.

No nosso caso, António Costa já deixou bem claro que está completamente fora de hipótese, se a situação piorar (a tal hipotética 2.ª vaga de COVID), mais um período de confinamento. Tenho agora para mim, e vistas as coisas “a posteriori”, que se tivesse havido mais ciência e menos achismo, até poderíamos ter evitado o primeiro confinamento.

Pensar que a economia podia ser secundarizada, dado o enorme problema de saúde que aí vinha, foi um erro. A economia tem a ver com saúde. Não se pode pensar saúde sem o factor economia que a afecta directamente e indirectamente. Sem economia saudável, não há saúde para ninguém. Esta, é que é esta.

A quebra de 13,1% do PIB representa “só” qualquer coisa como mais de 28 mil milhões de euros. Numericamente: 28 000 000 000€. Para que se tenha uma ideia do que isto representa, é bem mais do que os 20 mil milhões de gastos em saúde, previstos no Orçamento de Estado.

5. Agora tudo é COVID. O resto do que aconteceu nos últimos meses, foi quase que silenciado. Imprensa e dirigentes políticos e sociais, praticam, de um modo geral, uma política de indução ao medo. Pelo medo vivemos.

Nestes tempos, nada acontece a não ser o vírus. Os migrantes desapareceram... o aquecimento global já não existe... a guerra no Iémen não aconteceu... a da Síria tornou-se numa miragem... foi preciso um incêndio para que se falasse de refugiados… já não há fome em África... a brutal ditadura norte-coreana desvaneceu-se… a gravíssima situação na Bielorrússia é pouco mais do que uma nota de rodapé nos noticiários.

Tudo muito conveniente, seja à escala internacional, seja nacional, seja regional. O vírus tudo abafa. Já não há corrupção, o Sócrates desapareceu, das pedreiras que delapidam a ilha não se ouve nada, ditatorzinhos de pacotilha ditaram, sem ciência no “diktat”, o que bem entenderam, esquecendo o Estado de direito em que vivemos e que não pode ser, por motivo algum, beliscado, sob pena de abrirmos uma caixa de Pandora.

A saúde e a liberdade são bens importantes demais para serem postos em pratos diferentes da balança, que é o que se faz quando se alega que a saúde está primeiro que a liberdade. Seja lá quem for que não tenha liberdade, é uma pessoa dada a angústias. E a angústia é uma doença. A falta de liberdade faz mal à saúde.

Somos levados a ter em conta o número de infectados, quando o que deveria ser tido em conta é o de internados, quais destes em cuidados intensivos, e os que faleceram. São histórias atrás de histórias de pessoas que tiveram COVID e quase nem deram por isso. Tenho casos desses em familiares emigrados.

Agora vêm aí as aplicações para que os nossos movimentos possam ser controlados. Atenção que não estou a querer com isto dizer que não entendo, parte, da argumentação que sustenta a sua necessidade. Com isto, com este controle a que nos sujeitaremos, estamos a abrir uma porta que, depois, só a muito custo se voltará a fechar. Dar ao Estado a possibilidade de ter à sua disposição uma ferramenta dessas, é perigoso. Muito perigoso. Quem vai controlar o Estado em relação aos movimentos dos seus cidadãos que tenham, ou não, tido COVID? Num sistema democrático, que se quer que funcione com “checks and balances”, que “balance” vamos arranjar para controlar o “check” em branco que nos preparamos para passar?

Como tão bem escreveu Bernard-Henri Lévy, no seu “Este Vírus que nos Enlouquece”, a “pandemia” não é só um caso de medicina. Tudo devia ter sido gerido por equipas multidisciplinares compostas por médicos, cientistas, psicólogos, sociólogos, economistas, etc. A cientificidade devia ter-se sobreposto à política.

Eu, como Levy, não quero o “novo normal”. Quero o “normal” que me roubaram, de volta. Ele acredita que é possível que o mundo volte a ser como era, embora com algumas lições que temos que aprender sobre bondade e ajuda mútua. Quero voltar a apertar as mãos dos outros, como meio de respeito e aproximação social. Quero beijar quem me apetecer, sem estar condicionado por um medo exagerado e a roçar o absurdo. O que nos distingue dos restantes animais é a sociabilização. É por esta que conseguimos o entendimento, a paz e a solidariedade.

6. Aquele-Cujo-Nome-Não-Deve-Ser-Pronunciado e de quem não gosto nem um bocadinho, “tw ittou” na semana passada reconhecendo, finalmente, que a derrota do liberalismo é um dos seus objectivos. Esta espécie rasca de Voldemort da política nacional, já teve algum liberalismo como marca do seu partido. Como está sempre pronto a dizer que sim e o seu contrário, de preferência ao mesmo tempo, quando isso se tornou desnecessário, foi a correr apagar essas referências do seu programa partidário.

Os alemães chamam-lhe “stammtisch rede” (discurso de café), pessoalmente acho muito mais interessante a nossa expressão, “conversa de taxista”. É este o discurso d’Aquele-Cujo-Nome-Não-Deve-Ser-Pronunciado. Ouvi-lo ou apanhar um táxi no Aeroporto de Lisboa é a mesma porcaria. Ou apanhamos com o Benfica, ou com a mais mirabolante das teorias sobre como este país é só gandulos e que anda tudo a roubar. Não é que, lá no fundo, não haja um pouquinho de verdade. Um gajo houve aquilo e nem se apercebe que está a ir pelo caminho mais longe e o taxímetro sempre a contar. Se lhe chamamos a atenção é porque por ali é mais perto e ainda levamos com o sermão do “então você acha que o ia roubar”? Graças a Deus que agora temos a UBER.

O “inominável” do Chega é a representação de tudo aquilo que este país tem de miserável. Ele sabe, e é por isso que diz o que diz.

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