Crónicas

Velhos como trapos

Escolha aleatória de algumas “manchetes”:

“Estado falha vistoria a dois mil lares de idosos”; “Lares sem recursos para manter infetados”; “Mais abortos na Região”; “Animais despertam mais atenção do que os idosos”. E assim por diante. Mas, o que é que liga coisas tão diferentes? Aparentemente, nada. E, no entanto, “isto anda tudo ligado” pelo ar do tempo: a dominância do politicamente correto, nas suas múltiplas variantes — governança no limiar do populismo, impositivas causas fraturantes, relativismo, amoralidade e descarte, ditadura das redes e informação-espetáculo —, dá-nos um “caldo de cultura” com alma própria, cujo espírito social acaba por modelar as cabeças mais empedernidas. É o “ar do tempo”.

O que aconteceu com o lar de Reguengos de Monsaraz — e que foi só a “pústula” que rebentou, entre dezenas de outras que vão sendo aplacadas com os cuidados básicos para que tudo não descambe — é um espelho dramático da triste situação por que passam os lares, que já era má e que a pandemia só veio agravar: 45 por cento dos surtos ativos são em instituições de terceira idade; são mais de 3 mil os lares, centenas deles ilegais, para albergar uma população idosa de mais de 150 mil portugueses. Não é fácil ser velho em Portugal: 18 mortos num só surto e muita polémica depois, dá-se a “rentrée” do nosso Primeiro e, com a sua melhor pele de campeão da sensibilidade cínica, lá defende a honra do convento, numa entrevista-lençol para cobrir, não um, mas dois fins de semana! Num ápice, surgem 110 milhões de euros e mais 15 mil funcionários para os lares portugueses. Na verdade, terá percebido que o governo socialista e ele próprio poderiam ter, no drama revoltante de Monsaraz, o seu momento “Pedrógão 2” e, então, melhor seria aparecer em pose de Estado e sobrelevada projeção política.

O que não se viu com Monsaraz foi o quase levantamento nacional como aquando dos cães queimados num incêndio: com a óbvia cooperação mediática, o clamor por Reguengos nada teve a ver com o clangor de Santo Tirso! O que só pode ser lido como mais um sintoma da preponderância da “causa animal” no âmbito do politicamente correto. Se morrerem mais uns velhos, por covid, ou por desmazelo do sistema, paciência, é a vida, como dizia o outro: eles só estavam a aguardar o dia de serem removidos para fora de circulação, como os trapos. Mas se, por inoperância institucional ou dos cuidadores, a coisa ficar preta nos canis e gatis que as câmaras foram obrigadas a gerir e nós a pagar, eis que as vestais do “animalismo” rasgam as vestes em público, para que a dimensão do escândalo ganhe novos prosélitos: parafraseando o que dizia Marx da religião, também a nova “causa animal”, com os seus rituais e a sua beatice, é só “o coração de um mundo sem coração”, a invertida projeção antropomórfica de um afeto que já não ama as pessoas, mas adora os animais. Mas, atenção: só os muito fofinhos e muito queridos, cães e gatos de preferência, nada de reles exemplares do reino animal, como os ratos, as pulgas, e outros que tais (bem, talvez se admita um bácoro no cardápio, rosado e lavadinho, elevado pela trela à dignidade de caniche e passeado por putativa donzela numa rua da cidade).

Sejamos claros: uma coisa é a ética da “relação” homem-animal, um correlato da própria dignidade humana, outra coisa é a ideologia animalista que, por ações e omissões, vai contribuindo para a implantação do “mundo cão”, onde os velhos são arrumados em “albergues” e, como trapos, ficam sem voz, só à espera da sua vez...

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