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Crónicas

Os dias do vírus (V)

Os madeirenses, que mataram com os ferros da segurança, arriscam-se a morrer dos ferros do medo. Não é tempo de levantar medidas, mas já não é cedo para mudar de discurso

15 de abril

No que se convenciona chamar de opinião pública, os números de infectados e mortos em Portugal só podem ser uma de duas coisas: ou singulares, milagrosos, e o produto de mentes iluminadas; ou um flagelo assassino, martelado a eito e carburado a propaganda.

Não podem ser o que são, que é por ora um resultado de meia tabela, a par de outros medianos países europeus, coerente com a ambígua condição latina, medrosa, periférica, remediada e antiga deste nosso Estado.

Rui Rio julga que o aproveitamento político é anti-patriótico. Esqueceu-se de que era inevitável.

16 de abril

Título de uma notícia: ‘Temos de mudar a forma como interagimos com os animais’ – ‘temos’, nós majestático – para evitar novas pandemias’.

Não é a China que tem de mudar essa interacção. Somos ‘nós’, europeus, que andamos a comer os mesmos sete ou oito mamíferos e aves – porventura excessivamente desinfectados – há 200 anos, e implementámos o mais apertado e sofisticado sistema de segurança alimentar no planeta há pelo menos 20 (e veja-se quantas vacas loucas atravessaram uma fronteira desde então).

Dito assim com este ‘nós’, até parece que só por sorte o episódio não se passou no mercado municipal de Macedo de Cavaleiros, onde um transmontano podia perfeitamente ter agarrado em três ou quatro morcegos para deles extrair, entre pangolins e nas barbas da ASAE, uma competentíssima alheira.

A nossa relação com animais pode ser muita coisa, mas não é um risco de saúde pública. Pelo contrário, é uma relação que oficialmente defende a salubridade sobre tudo o resto, de tal modo que convive e se debate com os excessos dessa opção.

Há agendas que são rabos escondidos com o gato de fora.

17 de abril

O Licor Beirão dedicou uma campanha aos velhos. Se um ancião atender uma chamada no seu telefone de disco – sinal de que está em casa como é de lei – arrisca-se a receber uma garrafa de pinga.

Ignore-se a ironia de subornar idosos com álcool para defender a saúde pública, e foquemo-nos no no sentido da campanha, que é o popular e até o político.

Os velhos são umas crianças e uns irresponsáveis. Ai deles se saem de casa, ou se atrevem a receber uma visita. Se vão às compras, às cartas, passear, sentar-se à distância mais gregária dos bancos de um jardim. Os velhos, por esta hora, deviam saber encomendar mantimentos, fazer videochamadas, ter quem lhes busque os remédios e os dinheiros. Se é por eles que nos sacrificamos, porque não se sacrificam eles?

É inequívoco que o que se fez até agora foi prudente. Mas convém que se preserve alguma dignidade.

Os velhos têm direito à sua vida e à sua experiência. São indivíduos, diferentes e diferenciados. Não são uma abstracção, um preconceito, ou destinatários neutros e insensíveis de medidas selváticas e hipotéticas. O parque é o seu Instagram, as cartas a sua Playstation, as compras a sua Amazon. Ficar em casa, para eles, não é o mesmo que para nós. E aceitar com naturalidade, e até gozo, que os velhos se enclausurem sem prazo faz parte da cultura de descarte contra a qual o Papa tem vindo a alertar.

Falecidos os meus avôs e as minhas avós (são coisas diferentes), de velhos resta-me sobretudo uma tia, cuja idade não me favoreceria revelar. Seria também insolente sugerir que é meramente lúcida, porque o que é é jovialmente aguda, bem-humorada e perspicaz. Viajada, atenta, independente, vive antemurada por uma biblioteca clássica que sempre admirei. A minha tia, que leu Camus, Sartre, Sophia e Dickens como quem respira, lê por carinho estas páginas, e por caridade diz que gosta, assim me absolvendo e invulnerabilizando dos vícios e críticas congénitos à escrita pública.

À sombra dessa biblioteca suspeito que os velhos não saem por ser irresponsáveis. Saem por saber que a vida – sobretudo a que lhes resta – é demasiado preciosa para se passar sem risco, afectos, ou auto-determinação. Levantada a emergência, convém no regresso à presuntiva normalidade lembrar que o Estado tem ainda o dever de proteger e tratar os velhos, e que só um colossal falhanço o habilitaria a condená-los a um longo e desumano ostracismo.

É pela minha tia que me revolto, e espero não estar assim tão sozinho. Os velhos merecem toda a nossa consideração.

18 de abril

Na Madeira sobreviveu, por uns tempos, a esperança de uma excepção regional. Os dias de zero casos alimentaram um sentimento de impermeabilidade e vantagem, sustentado em medidas mais rigorosas e antecipadas.

Essa esperança saiu irrecuperavelmente gorada pelos números deste Sábado. E os madeirenses, que mataram com os ferros da segurança, arriscam-se a morrer dos ferros do medo. Não é tempo de levantar medidas, mas já não é cedo para mudar de discurso.

No mesmo dia, a Directora do Instituto de Medicina Molecular – que concebeu o teste português, e é capaz de saber mais disto do que a sua vizinha – afirmava em entrevista que “o vírus é relativamente bonzinho. (...) praticamente não afecta crianças, adolescentes, e jovens adultos. E os grupos de risco são pessoas com mais de 70 anos ou com outras complicações de saúde. (...) É necessário ter medidas coletivas que protejam em especial estas pessoas sem – e esta é a minha opinião pessoal – estagnar a vida daqueles de quem depende o futuro”.

O sonho de uma Madeira pristina e isolada é utópico e contraproducente. É inequívoco que teremos de correr riscos pela nossa liberdade e subsistência. Todos os povos sabem fechar-se, mas nem todos saberão abrir-se. E é aí que nos convinha ser excepcionais.

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