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A cidade e os seus fantasmas

As cidades mudam depressa demais... De repente, há coisas que faltam, outras parece que estão a mais

Numa cidade, não é possível viver apenas no presente, quer queiramos, quer não, somos obrigados a conviver com os fantasmas do passado. “As cidades – escreveu um dia o arquitecto Aldo Rossi – são grandes acampamentos de vivos e de mortos, onde alguns elementos permanecem como sinais, símbolos, advertências”. Ora esses elementos não são apenas as praças, as igrejas ou as ruas por onde passamos diariamente, são também as memórias que todos eles nos evocam. Uma cidade é um somatório de pedras e fantasmas.

As relações que tecemos com esses fantasmas é que nem sempre são as mais saudáveis. Veja-se, por exemplo, o que sucedeu na praça da Autonomia: destruímos as muralhas do brigadeiro Oudinot e reconstruímos o forte de São Filipe, isto é, matamos o pai, que ainda estava vivo e de boa saúde, para desenterrar o avô que dormia em sossego o sono dos justos. O assassinato foi um acto arbitrário de ignorância. A exumação talvez seja explicável: no tempo de destruição e apocalipse em que vivemos, reerguer os escombros do passado poder trazer algum conforto. Mesmo sabendo que o forte reconstruído não passa de uma inutilidade, que nada cabe lá dentro, que não há inimigos prestes a desembarcar no calhau. E mesmo que os houvesse já não haveria calhau.

A reconstrução, nos anos 90 do século passado, do portão dos Varadouros e do pilar de Banger, demolidos, respectivamente, em 1911 e 1939, são outros tantos actos de exumação. Paradoxalmente, quantas vezes nos temos revelado incapazes de zelar pelo património vivo e útil que herdamos dos nossos antepassados? As muralhas de Oudinot, onde floresciam as buganvílias, são apenas um entre muitos outros exemplos de património vivo e útil destruído. A inquietação que a destruição nos causa tem fundamento. Todos desejamos conhecer o chão que os nossos pais pisaram, revisitar a rua ou o jardim onde brincamos, reencontrar intactos os lugares onde a memória se incendeia e nos julgamos capazes de explicar quem somos. Desejos ambíguos, é certo, como todos os que convocam os fantasmas do passado.

“Nunca regresses ao lugar onde foste feliz – terá escrito a popular charadista Agatha Christie – só assim ele permanecerá vivo para ti. Se regressares, será destruído”. Quem nunca receou quebrar o encanto? Num momento (de portuguesíssima saudade!) eu quebrei-o. Por isso já não me apetece regressar ao bairro onde cresci e fui, talvez, feliz. Faltam-lhe coisas essenciais: a papelaria que vendia a caderneta de cromos d’Os Ídolos dos Estádios; a terra de ninguém onde se jogava ao berlinde; a minissaia da Lurdes e outros, enfim, monumentos. As cidades mudam depressa demais. Mais depressa do que nós. De repente, há coisas que faltam, outras parece que estão a mais. Até que, finalmente, vagueando com os nossos fantasmas por ruas que já não reconhecemos, quem estará a mais seremos nós.