Crónicas

Dava para filhos e netos

Estava eu com a cara enfiada no telemóvel, mais ou menos entediada com o que ia passando pelo écrã, uma mistura de notícias e publicidade a todas as receitas mágicas para perder 20 quilos num mês, quando me apareceu o título de um jornal de música a anunciar que Kurt Cobain, ídolo da minha geração, de quem roubei o estilo das camisas aos quadrados e das calças de ganga, tinha morrido há 25 anos.

E dei por mim a pensar que não podia ser, eram muitos anos, davam para filhos e netos e, na minha cabeça, não estou assim tão longe daquela miúda que, por causa da doença, cortou o cabelo e se rendeu à cena grunge para não pensar muito e encarar o que a atacava por dentro, à socapa e em silêncio. Lembro-me de que ouvi a notícia na rádio, a da morte de um jovem de 27 anos, mais um artista à deriva.

Ou a droga, ou a Sida ou os demónios que carregavam, os ídolos demoravam-se pouco tempo entre os vivos e encarnavam o espírito daqueles anos em que nos sentíamos mais ou menos órfãos. Sem uma fé ou uma causa para abraçar, sobrava uma angústia indefinida, não se sabia bem do quê. Ninguém nos dava importância e corria, pelos corredores das universidades e das empresas, a certeza de que as oportunidades acabavam todas aos 30 anos.

Lembro-me de como esta ideia – tão popular como as gravatas e as pastas de executivo – nos colocava um peso às costas, pois cada dia era menos um no caminho do sucesso. Eu não tinha dúvidas de que ia falhar o objectivo, estava ali encalhada nos tratamentos, com todos os planos em suspenso e tão frágil como Kurt Cobain, tão atordoada e com pensamentos sombrios. O discurso dos guerreiros do cancro ainda não tinha sido inventado.

Algumas vezes doía, custava a largar o pessimismo e vinham aquelas perguntas todas à cabeça e se fossem aqueles os meus últimos dias? Tenho memória de ser Primavera, de estar no jardim da casa do meu avô, com as ameixeiras em flor, de me sentar ao sol e desejar com muita força viver mais, viver até ser velhinha, muito velhinha. Não queria ser uma história trágica, não queria morrer nova, ainda bonita, destroçada pela doença ou atormentada por fantasmas, os tais demónios de Cobain e de outros antes dele.

Eu ainda não sabia quem ia ganhar, nem que depois de ganhar iriam passar muitos anos até ser capaz de olhar aqueles meses com serenidade, até perceber todos os contornos do momento mais difícil, solitário e desesperado da minha vida. E a notícia na rádio a dizer que Kurt Cobain tinha morrido fez-me agarrar aos destroços daquele naufrágio e lutar, lutar com tudo o que tinha. Devo-lhe isso, além da música e das roupas porreiras.